*Tacada de ouro

Tacada de ouro

Conheci dona Benedita no início da década de 60, pela felicíssima coincidência de que ela era mãe de meu melhor amigo. Quando esse amigo prematuramente partiu, eu me aproximei mais da família que se constituía de três moças e ela, a mãe.

Criara a renca de filhos, como ele mesmo chamava, com a tenacidade de uma leoa. Quantas vezes ela não tivera que dar murros em mandacaru e comer mel de abelha com ferrão e tudo! Isso era uma coisa, mas engolir sapos não fazia parte de sua dieta.

Conseguiu com que as filhas e mais dois netos obtivessem graduação universitária e ela mesma ainda encontrou tempo para entrar na universidade para estudar Francês. Na verdade, ela era uma águia, não voava baixo não. Hoje, caminhando para um centenário de vida, perdeu muito da autonomia de voo, mas não abdicou da altivez, nem da elegância e, menos ainda, da verve. Costumamos passar horas num “dedim” de prosa, mesmo que eu tenha a idade de ser seu filho. É o tipo de pessoa que a gente ama mais a cada dia.

Essa senhora concentra muitas qualidades: é guerreira por excelência, agradável e alegre por natureza, tem raciocínio rápido e, na outra ponta, um pavio que não é dos mais compridos, para quem ultrapassa os limites do bom senso.

Hoje vivemos todos reclusos, atrás de muros com cercas eletrificadas, grades, telas, câmeras de vigilância e chaves. Algumas residências são verdadeiras fortalezas, contudo, nem sempre foi assim. Houve épocas em que as portas e janelas não tinham grades e ficavam escancaradas o dia todo. Quando saíamos, deixávamos a chave sobre o portal ou num vaso de flores. Quando chegava alguém, batia palmas e gritava:

– Ó de casa!

– Ó de fora! Pode entrar! – respondiam os de dentro. Algumas vezes, nem se conhecia quem falava de fora, mas o nível de confiança nas pessoas era total.

Dona Benedita era costureira de profissão e tinha uma boa clientela. Isso fazia com que sua casa tivesse um movimento maior que outras. As pessoas chegavam, abriam o portão e embiocavam de casa adentro.

Numa dessas, aconteceu um fato que merece ficar nos registros da história.

Tudo começou, quando adentrou ao atelier uma senhora da outra rua que, sem muitas delongas, foi logo despejando:

– Dona Benedita, aquela fulaninha ali da esquina parece que não tem o que fazer na casa dela. A mulher passa o dia todo bisbilhotando, vigiando a vida de cada um e falando mal das pessoas na porta de casa, veja se isso tem cabimento! Outro dia...

Nesse ponto, a conversa foi bruscamente interrompida pela dona da casa que, na sua tranquilidade de sempre, deu uma tacada de ouro. Olhou bem dentro dos “zoi” da interlocutora e com a delicadeza de um fio elétrico 220W desencapado, disse-lhe:

– Pois aproveitando seu assunto, tenho uma boa pra lhe contar: mesmo sendo fofoqueira, segundo você acaba de me dizer, aquela senhora nunca entrou na minha casa, atrapalhando meu trabalho para falar mal de você...

Apanhada no contrapé, mas entendendo bem a carraspana, a intrusa cuidou de se escafeder pelo mesmo lugar por onde entrara, “per omnia saecula saeculorum!”

Nossa! Eu não estava lá, mas quem me dera ser um mosquito para ver tudo aquilo...

Foi a partir desse acontecimento que fundamentei minha Filosofia de Botequim, que diz: “Quando alguém se mete a falar mal da vida alheia é por não ter nada de bom pra falar da sua.”

São coisas de minha terra...

PS.: "per omnia saecula saeculorum!" = para todo o sempre.