Churrasqueiro - Maratonista por Profissão
Charlles Nunes

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“Se há algo que traz paz e alegria ao coração humano e à família é viver dentro de nossas possibilidades. E se há algo que traz tristeza, desânimo e desespero é ter dívidas e obrigações que não podemos saldar.” ~ G. H. Durham

A profissão de churrasqueiro sempre me tocou bem de perto. Foi com ela que meu pai ganhava a vida. (Se você também aprontou quando criança imagine quantas coças de palito eu levei! A poupança ardendo nos servia de lembrete para não repetirmos a façanha...)

A exemplo dos Alcoólicos Anônimos, que organizam grupos de ajuda para os que convivem com o dependente, deveria haver assistência permanente para a família dos ambulantes...

Não estou sugerindo que meu pai tenha sido rude. Muito pelo contrário: era um camarada bastante divertido. Mas quem via aquele paraibano animado, falante, nas feiraslivres ou no centro, não imaginava a maratona que ele enfrentava por detrás dos bastidores.

Desde a compra do material até o retorno para casa com as férias no bolso, o churrasqueiro tem de matar um leão por dia. Comprar a carne, os palitos e o carvão. Preparar o molho e a farofa. Socar o alho e temperar tudo na medida certa. Empurrar o carrinho e cuidar da manutenção.

Ao transitar apressados pela casa, era bastante comum nos depararmos com uma montanha de carne picada na cozinha. Em cima da mesa, a pilha de carne variava de cor: boi, frango, porco, camarão... Com sua paciência de Jó, o pai ia intercalando pedaços de batata, bacon ou coração, tecendo um colar de bijuterias em cada palito. Os fregueses achavam aquilo ‘jóia’! Nós também.

Sua especialidade era o galeto. Um frango inteirinho aberto – espetado em dois palitos – e mergulhado ainda crocante na farofa. Na feira de domingo, era o almoço garantido dos feirantes. Até hoje, sinto água na boca só em pensar...

Foi nesse universo que percebi ainda criança, como os ossos do ofício podem ser mais duros pra muita gente. O homem que nos fornecia os palitos já era idoso – bem idoso – além de deficiente visual. Dava um baita exemplo ganhando o sustento com as próprias mãos.

Sua filha era quem nos trazia as encomendas. Limpinhos, bem afiados, amarrados em feixes de cem. E voltava alegre com o dinheiro também limpo daquele trabalho tão honesto. Aquela família nos ensinou que o verdadeiro cego é quem prefere não enxergar as possibilidades que a vida tem a oferecer.

Até hoje fico admirado ao pensar em como aquele homem cortava o bambu, e fazia os palitos, de forma artesanal. Imagino-o a conferir as pontas dos palitos, um a um, imerso em seu mundo de escuridão.

Ou seria a filha quem realizava essa etapa? Não sei, e acho que nunca saberei. Mas quem elogiava o tempero lá na feira não podia sequer imaginar que tinha em mãos uma obra de arte.

Naquela época, além dos amigos ‘televizinhos’7 – sempre lembrados pelo Daniel Azulay8 – havia também os ‘gelovizinhos’. Era a turma que vivia pedindo gelo na casa dos outros!

Meu pai, sempre inovador, aproveitou pra criar sua versão particular. Encontrava carne na promoção, estocava tudo que podia na casa do seu Epaminondas, cujo coração era maior do que o próprio congelador.

Qualquer corte na mão ou farpa no dedo caía logo no esquecimento quando meu pai ganhava as ruas e gritava aos quatro ventos que ‘provar seu churrasco era a opção mais inteligente do momento’.

Além do manjado ‘moça bonita não paga, mas também não leva’, seu grito de guerra era: “-- Vamu cumê, gente! Vamu cumê, que o mundo vai acabá hoje!”

Ao ouvir os elogios dos fregueses, eu notava que um brilho especial aparecia em seu olhar. Era o orgulho pelo reconhecimento de um trabalho bem feito.

Para nós, meninos, acompanhá-lo era um grande barato. No caminho, ao lado do viaduto, havia uma árvore centenária, repleta de cipós. A inclinação do terreno criava um pequeno precipício.

Ali parávamos a cada vez. Primeiro ele se balançava, imitando o Tarzan que assistíamos em preto e branco. Depois, levantava cada um de nós, e nos empurrava rumo ao desconhecido. Aquilo era melhor que a Disney!

À beira da churrasqueira, aprendi lições que levo por toda a vida. A primeira delas, com meu irmão mais velho. Eu havia acabado de entrar na escola, e como ele estava um ano adiantado, já dominava valiosas técnicas de negociação. No começo da jornada, ganhávamos dois churrascos de brinde. Eu comia logo o meu, mas ele tinha uma estratégia melhor... Aguardava o próximo freguês, e vendia o próprio brinde.

No minuto seguinte, lá estava o mano em frente à vitrine da padaria, escolhendo entre o pudim, refrigerante, salgado ou quindim. Antes do fim da noite o pai liberava a churrasqueira. Aí sim, podíamos comer à vontade, e ele sempre se dava bem. Garoto esperto o meu irmão!

A segunda aconteceu numa noite de verão. Meu pai havia ido buscar troco – ou ao banheiro – não me lembro, mas acabei ficando sozinho na carrocinha. Afinal, eu já tinha quase doze anos!

Chegou um maltrapilho e perguntou o preço do churrasco. Informei que eram três cruzeiros. Ele saiu quieto pra trás do carrinho – era uma grande área, embaixo do viaduto. Começou a se abaixar e levantar, num gesto pra lá de estranho...

Em princípio não entendi a cena. (Afinal... Eu tinha menos de doze.) Mas qual não foi minha surpresa ao perceber que ele estava pegando palitos com pedaços de carne e os enfiando apressadamente boca adentro.

Fiquei paralisado. Nunca tinha visto alguém passando fome. Eu tinha poucos segundos pra decidir. Meu coração gritava para que eu desse uma dúzia de churrascos ao pobre homem, mas minha mente fingia não ouvir, pensando no que meu pai diria a respeito...

Quando chegou, contei-lhe o ocorrido. Ele ouviu atentamente, e no final comentou: “você devia ter dado alguns pra ele.”

Além do galeto, o velho tinha também uma arma secreta para atrair a clientela. Era um churrasco ‘desse tamanho’, feito de pura gordura! Quando ele sacudia aquele boi em cima do braseiro, fisgava fregueses no final do quarteirão. Tinha lojista que largava até o balcão para conferir aquele cheirinho...

No fim da noite, ele mergulhava a isca na farofa, e lambuzava a cara de farinha, acompanhado de perto por seus meninos e um litro de Fanta laranja.

Mas o tiro acabou saindo pela culatra9 . De tanto comer gordura, sua pressão foi subindo, subindo, a ponto de matá-lo de derrame. No auge dos seus quarenta e sete anos, deixou minha mãe viúva. E sem bens, como frisava seu atestado de óbito!

Quase sem acreditar, li as palavras mais frias que um pedaço de papel poderia suportar: ‘Não deixou bens. Deixou três filhos.’ E a conclusão era ainda mais cortante: ‘O referido é verdade e dou fé.’

Fui o primeiro a receber a notícia, naquele tom de punhalada. Que desperdício: escrever um documento inteiro para acusar um cristão de ter deixado filhos! Se esse foi seu único erro digno de nota, meu pai já deve estar num bom lugar...

O que o atestado não mencionou, foi que ele deixou aquele carrinho amarelo e uma Bíblia. Após ponderar se daríamos continuidade à profissão, minha mãe decidiu retornar à costura. Vendemos o carrinho. Ficamos com a Bíblia.

Foi-se o velho, ficaram as lembranças e os ensinamentos. Nunca mais vi a bonita filha do cego, nem levei coça de palito. Nunca mais assisti Tarzan, nem pendurei no cipó ao lado do viaduto. E até hoje evito gordura.

Ficou o respeito por todo e qualquer trabalho honesto, executado com alegria, a despeito da dureza do dia a dia. Ficou o gosto pelos prazeres simples da vida, e a lembrança de que é gratificante fazer o melhor quando a vez é toda sua.

Creio não haver maior tesouro que um menino possa desejar...


 

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