Camelô - De Temporário a Permanente
Charlles Nunes

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“A pedra no sapato de minha professora primária era meu amigo Louie. Ele sentava-se na sala de aula e mastigava a gravata até ficar molhada e desfiada. Ela vivia chamando a atenção dele...

Mais tarde, ele se tornou um homem de posses e eu aprendi a nunca subestimar o potencial de um menino para ter êxito na vida... Mesmo quando ele mastiga a gravata!” ~ Gordon B. Hinckley



Cada geração tem suas manias. A minha, contava os centavos pra gastar no fliperama . Como quase ninguém tinha videogame em casa, era lá que nos encontrávamos após a escola.

Minto. Eu estudava à noite. Mas dava uma passada rápida por ali após o trabalho. Ganhava a vida como camelô.

Fiquei contente quando o Leônidas me arrumou aquele emprego na barraca do Tuca. As vendas eram pra lá de incertas, mas a diversão era garantida!

Nossa barraca era de mochilas e meias, embaixo do viaduto. Ali, exercitávamos nossas malvadezas. Tinha um homem que vendia uns biscoitinhos amarelos, uma imitação barata de Cheetos. Aliás, bem barata, pois aquele sacão por um real cabia no mais modesto dos orçamentos.

Os biscoitos ficavam esperando o saco abrir pra começar a dar cria. Quanto mais se comia, mais biscoito aparecia! Ninguém dava conta de comer um saco inteiro daquele plastiquinho salgado. (Nem mesmo o Soró, que tinha a fama de esfomeado.)

Num dia de menor movimento, alguém deu a idéia de tocarmos fogo nele. (No biscoito, não no Soró.) E não é que o infeliz pegava fogo mesmo? Aquele isopor tingido de amarelo devia nos arrebentar por dentro!

Como vingança, passamos a tacar fogo nos biscoitos, um a um, e os jogávamos em frente à barraca do vendedor. As vendas dele chegaram quase à zero, e ele acabou mudando de ponto. Embora fosse engraçado na época, às vezes bate aquela pontinha de remorso por ter sido um aprendiz de incendiário.

Almoçávamos numa Kombi branca. Um marmitex pra cada um, um guaraná pra cada dois. Naquele minirefeitório improvisado, batíamos nosso papo de camelô. A quentinha era devorada sem trégua, sob um calor infernal. O suor escorria do queixo, indo salgar mais a marmita.

Algumas semanas de trabalho foram suficientes para que eu descobrisse o fliperama das redondezas. Passei a perambular por ali sempre que tinha uns trocados. Enquanto fazia o quilo, virava detetive e atirava pra todo lado no Elevator. No próximo minuto, já era um piloto de Fórmula Um. Com direito a ar condicionado, pelo módico valor de vinte e cinco centavos a ficha!

Num dia em que estava abonado, acabei me empolgando. Pulei fora da Kombi e fui me refrescar no... Você já sabe. De ficha em ficha, minhas moedas foram se esgotando. Os ponteiros do relógio me fitavam impacientes. Comecei à uma da tarde. Quando o dinheiro acabou, faltavam quinze para as quatro.

O Tuca já me esperava do lado de fora da barraca. Braços cruzados, as bochechas vermelhas, o olhar soltando labaredas. Sem mais delongas, cuspiu logo os marimbondos:

“-- Sabe que horas são? Eu preciso ir ao banco – tô com uma boleta atrasada! Agora, vou ter que pagar juros! Se for fazer isso de novo, nem precisa aparecer amanhã!”

Pensei por um instante: se eu tiver dinheiro, é isso mesmo o que eu vou fazer. Como a demissão era a saída mais provável pra descolar uma graninha, lasquei de volta:

“-- Tá combinado. Pode acertar comigo hoje mesmo.”

No outro dia, já um ex-camelô, venci mais algumas corridas, acertei mais alguns espiões... E lá se foi mais um provável concorrente do Sílvio Santos!

 



1. Fliperama: principal ancestral do videogame. ☺
2 Elevator: ‘elevador’ em inglês; jogo de fliperama, bisavô materno do Play Station. ☺
3 Abonado: cheio da grana, montado na gaita, com dinheiro pra dar e vender.
4 Silvio Santos: Empresário brasileiro e apresentador de Programa de TV que trabalhava como camelô.

 



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