Feliz

Naquelas tardes que fazia um vento bom para empinar pipas, em que o céu se enchia de pontos coloridos esvoaçando por todas as direções, eu sempre entrava num completo frenesi de contentamento. Incansável, corria para cima e para baixo, até o cair da noite, na caça de cada vez mais Raias ou Quadrados que pudesse catar; pulando barrancos, escalando morros, subindo em árvores, muitas vezes arriscando a própria vida – las cicatrices no me dejan mentir – tudo por aqueles pedaços de papel colado em varetas de bambu.

Na época, o Duda, meu primo, ainda era vivo. Morreu pouco tempo depois que nós nos mudamos, foi assassinado. Do pessoal de lá de casa eu fui o primeiro a saber da sua morte. Por um acaso, quando corria atrás de um Pipa Mandado, passei pela quadra e alguém me contou sobre sua morte. Quando cheguei em casa esbaforido dizendo o que havia acontecido, minha mãe quase me mata também. Eu ainda não sabia exatamente o que era a morte, e por isso contei como se nada de tão grave tivesse acontecido.

- Mãe, a senhora não sabe o que aconteceu, mataram o Duda.

- O que é isso menino, deixa de falar besteira!

- É verdade mãe, mataram o Duda, o corpo dele tá estirado lá na quadra.

- Tiago, para de falar besteira e vá ver isso direito, agora!

- Mas mãe...

- Vá!

E eu fui. Fui correndo. Quase voando. Era realmente o corpo sem vida do primo que estava estirado no chão da Quadra de futebol. Assim que vieram buscar o cadáver para necropsia, o velório e depois o enterro, minha mãe fez o maior escândalo. Ela gostava muita do Duda. Quando metade da casa desabou, e de uma hora para outro nos vimos sem teto, morando temporariamente na garagem de uma vizinha, um mês depois o primo Duda foi uns dos que ajudaram na construção de uma nova casa.

Eu era bem criança ainda. Houve um mutirão para construir a casa. Lembro que o Primo Duda sugeriu que me deixassem assentar o primeiro tijolo dizendo que traria sorte para nossos futuros dias ali. Nós, os Ferreiras, fomos os primeiros a chegar naquela região. Os primeiros a separar um pedaço de terra, levantar quatro paredes de tijolos, cobrir com telhas e cair para dentro.

Desde que subimos de Santos para o Jardim Fortaleza, aquela já era a quinta casa em que morávamos. A primeira foi no quintal de um tio meu, o Tio Paulo. Inclusive, quando saímos de lá, quem passou a morar na casa com os filhos e esposa, foi o primo Duda, que era um dos filhos do tio Paulo. Pelo que consta das reclamações da minha mãe, havia muitas desavenças entre ela e a família de meu pai, o que, claro, resultou em mudança. Continuava a nossa saga.

Após saímos do tio Paulo por conta das brigas, fomos morar em um barraco de Madeirite, também em um terreno emprestado. Emprestado pelo velho seu Luís. Me recordo vagamente do rosto do velho. Acho que ele era um colega de copo do meu pai. Um dia choveu tanto que o barraco encheu de água. Era de noite, meu pai e minha mãe tiveram que suspender a cama comigo e a minha irmã em cima.

De lá do Seu Luís, ocupamos uma outra casa, a terceira casa, onde tinha um poço. Essa casa não tinha luz elétrica, então a iluminação era feita com velas. Bem, essas são as minhas únicas memórias de lá, o poço e a iluminação a vela.

Da casa do poço, pulamos para casa que desmoronou, que era alugada. Quer dizer, teoricamente alugada, pois raras vezes tínhamos o dinheiro do aluguel para pagar para Senhoria. Mulher de bom coração, nunca nos despejou. Só saímos quando a casa veio abaixo. A garrafa de Tubaína na Padaria da rua debaixo custava vinte e cinco centavos e um estoque de bolachas recheadas era nosso maior sonho de consumo.

Imagine a cena. Duas crianças, eu e minha irmã, sentadas na beira de um barranco esperando a mãe chegar do trabalho, se perguntando de instantes em instantes se a mãe estava no ônibus que acabara de apontar no horizonte. Se ela traria consigo a ansiada bolacha recheada. Cem por cento trigo, açúcar, óleo, corante e conservante, tão viciante, tão deliciosa. Passávamos o dia brincando ao redor da nossa própria casa, não podíamos sair para mais longe, a vizinha do lado estava de olho, tomando conta de da gente naqueles dois dias da semana em que a mãe limpava a sujeira da patroa. E o pai, onde estaria o pai, no bar, fazendo algum Bico? Porque será que o pai nunca se preocupava em trazer bolacha recheada, mas por outro lado, quase sempre estava com bafo de cachaça na boca quando chegava da rua?

Como eu dizia mais acima, precisou que a casa desmoronasse para que finalmente saíssemos de lá. Decerto a senhoria não comemorou a nossa saída naquelas condições. O melhor da minha infância tinha sido vivido ali, mas eu ainda não sabia disso.

A vida seguiu seu rumo. Após o pula-pula de casa em casa, finalmente paramos na qual eu assentei o primeiro tijolo, terreno que também ocupamos. De certa forma, eu ter assentado aquele primeiro tijolo, realmente trouxera a sorte que meu primo Duda prenunciava, pois meu pai vive por lá até hoje, ainda tomando suas cachaças uma vez por outra.

No início, quando éramos somente nós naquele mundaréu de terra, tinha milho, batata, mandioca, inhame, cana, tudo a vontade, plantado pelo meu pai na roça que ele abriu no entorno da casa. Até hoje sinto certo ranço de comidas que levam milho, comidas como Pamonha, Curau de milho e coisas do tipo – de tanto que eu comia.

Porém, como tudo que é bom acaba logo, não demorou muito para que meu pai desse um jeito de destruir o solo com algumas queimadas. Logo a terra ficou improdutiva. E no final das contas, ficamos somente com a criação de galinhas e seus ovos, os quais eram ansiosamente aguardados antes de cada almoço.

Minha mãe ainda continuava trabalhando na casa da Edith duas ou três vezes por semana e meu pai fazendo seus Bicos. Bicos que, na teoria, era para ajudar em casa, mas acontece que ele sempre bebia ou jogava com a metade do dinheiro que ganhava. Quantas vezes eu não tive de pedir pão amanhecido na padaria do finado Gabriel para termos o que comer no café da manhã.

Contudo, apesar de toda miséria, nós nunca passamos fome. Digo, nunca ficamos um único dia sem comer no mínimo quatro refeições, café da manhã, almoço, café da tarde e janta – ou quase nenhum dia. Não eram as melhores refeições do mundo, e também nem sempre era fácil consegui-las, mas sempre melhor do que nada.

Todo dia de manhã, logo depois do café, eu tinha que ir à mata caçar lenha para esquentar a água do banho. Isso sempre me injuriava, pois, o que eu queria mesmo era cair para rua para brincar – seja lá qual fosse a brincadeira da vez, pipas, bolinhas de gude, ou jogar futebol no campinho – aproveitar o máximo aquelas poucas horas que tinha durante as manhãs.

Eu sempre colhia a madeira o mais depressa possível, as vezes até me machucava, mas sempre compensava o esforço, logo estaria livre, até chegasse o horário de ir para escola.

Todos nós demos dura naquele campinho. Quer dizer, uns um pouco mais. No início o local que escolhemos era todo ondulado, com um barro duríssimo de cavar. Quando a enxada ou picareta pegava em uma pedra, chega saia faísca!

Éramos em cinco. O Franciel era o estraga prazeres, o cara que se pendurava na trave de madeira que acabávamos de levantar com a intenção de derrubá-la, por pura maldade. O Miqueias, um dos quatro irmãos mais novos do Franciel, era o mais zoado por todos, chamávamos ele de “nariz de coxinha”. O Adriel, era o filhinho da mamãe, o bobão, ainda falava em brincar de carrinho e coisas do tipo. E o Joelson, que entrou para turma pouco tempo depois, era “o pilantrinha”, o cara que sempre queria tirar vantagem para si em tudo. Depois que o Franciel e o Miqueias se mudaram do bairro eu o Joelson ficamos muito próximos.

Algumas vezes, inesperadamente, uma torrente de gotas d’agua vinham se aproximando lá longe, despencando do alto do céu sobre a mata que gritava de alegria. Ela passava rebimbando sobre nosso telhado e em questão de segundos tudo estaria molhado e enlameado. Dali em diante seria preciso ter cautela para descer a escada de degraus cavados no barro. Qualquer passo em falso e era bunda no chão na certa. Quantas vezes eu desci por ali depois da chuva a caminho da escola, ou até mesmo debaixo do Pé-d’água, com uma sacolinha plástica calçada nos pés, para não sujar o sapato com a lama. Lama que nos perseguia até pelo menos metade do caminho, que era quando finalmente chegávamos no trecho asfaltado.

Saiamos, eu e a Thais, todo santo dia, rumo a casa do Joelson e, após ouvirmos a parte final da música Boemia Rhapsody do Queen em alto volume, aquela parte mais agitada, rumávamos para o colégio.

Com toda certeza o melhor da escola para mim, era quando as intermináveis horas de espera finalmente acabavam e o sinal da saída tocava – Oh, Jesus, o som da liberdade! – Logo eu estaria em casa, trocaria de roupa, procuraria algo para comer e cairia na rua novamente, de volta ao campinho.

Em uma brincadeira que chamávamos de “Travinha”, quando a bola batia na trave, quem a chutava ganhava mais uma chance de tentar fazer um gol. Desleal, ou melhor, “apelão”, era aquele que chutasse de Dedão. As regras eram simples, dois a zero o jogo acabava para que o próximo adversário do vencedor entrasse. Não sendo de dois a zero, a partida só acabava quando alguém fizesse três gols.

Quem jogava descalço, corria sério risco de esfolar o pé ou abrir “o Tapão do dedão”, pois o campinho, apesar de ser de terra, como eu já havia dito, era de terra duríssima, isso sem falar nas próprias pedras, que também existiam aos montes pelo chão.

Às vezes a disputa entre os dois oponentes podia durar horas, bola chutada pra cá, bola chutada pra lá, bola chutada pra cá, bola chutada pra lá... Outras vezes, durava poucos minutos. Como dizem, tudo dependeria da flexibilidade do rabo da lagartixa.

Tinha dias que o Alemão da Eliane vinha jogar com a gente. O Alemão já era casado, pai de família e tudo, mas as vezes, nas suas folgas do Aeroporto, ele gostava de tirar um lazer com a molecada. Ele morava praticamente encostado ao Campinho.

A casa onde moravam o Miqueias, o Franciel, mais seus outros dois irmãos, com a avó e um tio deles, também ficava próximo ao campinho, bastava atravessar a rua. E, pulando duas casas rua acima, morava o Adriel, com seus pais e irmão. Somente eu e o Joelson morávamos um pouco afastados, a mais ou menos duzentos metros de distância.

O Campinho era ponto de encontro para todos nós. Nas manhãs ensolaradas, após ter catado a lenha na mata, eu geralmente era um dos primeiros a chegar por lá...

To be continue...

Tiago Torress
Enviado por Tiago Torress em 04/05/2020
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