A IMAGINAÇÃO DE EXISTIR
 
O Princípio do Prazer', quadro de René Magritte - Cultura - Estadão

Por Leont Etiel 

Quem adentra no lugar não passa indiferente ao que está anotado num manifesto dependurado ao lado esquerdo da porta: querida imaginação, o que sobretudo amo em ti é não perdoares. Entre tantos infortúnios por nós herdados, deve-se admitir que dispomos da liberdade de espírito.

Depois da vista de olhos nessa consigna, é quase de imediato, tal qual a escrita automática dos surrealistas, o que mentalmente vem a lume. Em palavras aproximadas, é como se fosse soprado algo a dizer que a imaginação não deve ser atenuada em decorrência das rotineiras correntezas cotidianas, sendo reduzida à servidão, pois só o ato de imaginar dá-nos conta do que pode vir a ser, e isto é bastante para suspender, mesmo que por um instante, às interdições que bloqueiam a essência do existir.
Por consequência, para os que ultrapassam o mencionado lugar, observando, ao lado esquerdo da porta, o manifesto da liberdade de espírito, uma ilação que, sem demora, começa a deambular pelos pensamentos é a de que a imaginação faz par com o tempo e a memória. Não é por outra coisa que o tempo passado é o tempo da memória, só sendo possível de ser (re)vivido mediante a lembrança acionada pela imaginação para fazer os acontecimentos que nele tiveram lugar presentes até o derradeiro dia do vivente.  De onde se impõe que somos aquilo que pensamos, amamos, realizamos e lembramos. Ademais dos afetos que nutrimos, nossa fortuna diz respeito aos pensamentos que pensamos, às ações que levamos a efeito e às lembranças que conservamos, as quais, persistentemente, não se apagam em nós como  únicos guardiões delas. Isso é assim mesmo que a imagem da vida possa ser nivelada a uma estrada cujo fim sempre se desloca para frente, e quando se acredita tê-lo alcançado, pode ocorrer de não ser o que  se imaginava.
O que se avista no lugar antecedido pelo manifesto da liberdade de espírito é um continente de interrogações e, ao mesmo tempo, de superação de contradições. Lugar a ser habitado por uma comunidade imaginária (talvez de poucos), nele se tem presente que a vivência cotidiana não significa necessariamente convivência. Nem sempre os que falam uns com os outros falam de fato entre si. Dois monólogos não produzem um diálogo. A imaginação pode fazer com que, em meio ao rotineiro monólogo, o diálogo sobre o que é essencial ocorra consigo próprio.
O lugar que tem o manifesto da liberdade de espírito em sua entrada situa-se no que André Breton designou como um ‘certo ponto da mente’: Tudo tende a nos fazer acreditar que existe um certo ponto da mente em que a vida e a morte, o real e o imaginado, o passado e o futuro, o comunicável e o incomunicável, alto e baixo, deixam de ser percebidos como contradições. A imaginação, exercitada à maneira surrealista, é, antes de tudo, uma trilha cognoscente para um modo de existir pleno da consciência de si e livre das oposições binárias que interditam a vida.