Sobre a experiência do vôo livre, medos e deletar arquivos
Quem nunca se viu, do nada, doido pra limpar a área de trabalho do computador, esvaziar a memória do celular ou dar uma organizada nas pastas, fotos, organizar álbuns de vídeos e a infinidade de arquivos que ocupam de forma descontrolada o espaço dos equipamentos eletrônicos.
Hoje eu me peguei fazendo essa limpeza e de repente veio a lembrança nítida do dia 28 de dezembro do ano passado, quando cheguei na região dos Vales de Minas (do Rio Doce e Mucuri) depois de uma viagem de trem que planejei fazer sozinho (queria conhecer a ferrovia Beagá-Vitória) indo a Governador Valadares e Teófilo Otoni. Decidi conhecer o Pico da Ibituruna. Lugar bonito. É dito um dos melhores pontos locais para a prática do esporte vôo livre ou paraglaider, no Brasil e América do Sul. Pesquisei. Fiz contato com uma escola. Pronto. Contratei um vôo duplo, aquele se voa acompanhado de um instrutor profissional. E assm o fiz na manhã do dia seguinte, último domigo de 2019.
E por que organizar os arquivos antigos do computador hoje me remeteu ao vôo livre de quase 4 meses atrás? Simples. Primeiro eu lembrei de uma aula na Pós, sobre o uso da tecnologia e o quanto o sistema Windows se parece com nosso cérebro. Ele guarda informações, imagens, arquiva tudo. Prioriza o que você usa mais, o que é mais ou menos importante. Naquela aula eu estava acompanhado por um amigo e uma amiga e tivemos um bate-papo sobre o curso, que nos marcou. Falamos sobre como algumas pessoas conhecidas que sofreram com opressões em sua adolescência ou sentiram muita influência de posturas arrogantes ou autoritárias vindas de pais e mães, do tipo “você não sabe cantar, menino” ou “você não sabe fazer isso, menina”, “é melhor nem fazer aula de canto”, “nem tente aprender música, você vai passar vergonha”… coisas assim. E esse tipo de opressão ou proibição acontecia também para o esportes, poesia e tanta criatividade que foram podadas, totalmente inibidas.
Naquele dia falamos também sobre os silenciamentos a que pessoas são impostas o tempo todo: “pra quê dar uma opinião”? “quer consertar o mundo?” ou “você não vai conseguir, não adianta tentar mudar tudo que tá errado” e boicotes que pessoas relatam, inclusive em casamentos, vindo do parceiro ou da parceira e no trabalho, de colegas ou chefes, do tipo “você não deve escrever isso”, “não deve fazer assim ou assado”, “melhor manter-se no seu canto, ninguém presta atenção em você!”, “tudo que você faz dá errado!”, enfim falas que desqualifica ou deslegitima qualquer pessoa... A gente proseava porque tinha uma relação com a aula. Naquela noite, fui pra casa pensando em pessoas marcadas por grande necessidade de aprovação alheia e que sempre ouviram que suas ações iriam “pegar mal”, ou que fulano poderia reprovar e tal… ou isso algo pode causar a inimizades de sicrano.
O fato é que guardamos dentro de nossas janelas e arquivos, muita coisa que nos remete a estes episódios. Fatos que remetem a opressão, silenciamento, boicote ou reprovação. A verdade é que, do mesmo jeito que no computador salvamos os arquivos na nuvem ou pen drive, estes arquivos ficam ali guardados, invisíveis, mas não os apagamos. Jogamos na lixeira e não os deletamos em definitivamente.
Então. Voltando ao meu vôo de paraglaider, fiz contato uma das escolas mais conhecidas da região. Vai aqui vai uma saudação ao professor Remult, que se dispôs a me encontrar logo cedo no hotel. Subimos de ônibus. Uns 50 minutos de estrada, em completo declive, circulando o Pico da Ibituruna até seu ponto mais alto, onde há uma espécie de mini-pista e rampas para decolagem.
Antes, não comentei ninguém sobre o vôo. Depois, quando falei para alguns, as reações foram diversas: “o que te levou a voar, foi pela adrenalina? Sentir a emoção?”. “Foi pra vencer o medo de altura?” “Que doido, precisava?” “Foi recomendação terapêutica?” “Queria uma aventura? Ecoturismo?” “Uai, você nunca gostou de esportes radicais, o que te deu?” Não, não, não, nada disso. Alguém chegou a perguntar se eu quis provar pra todo mundo que eu era capaz de fazer algo bacana. Bom, na real, se tinha alguém pra provar ou mostrar algo, era pra mim mesmo. E talvez pras minhas filhas.
Chegamos lá volta de 10 horas. O professor Remult me explicou que dezenas de pessoas sobem no Pico diariamente para decolar ou assistir os vôos. Outros vão a passeio, fazer peque-nique ou contemplar a paisagem vislumbrante: de um lado Valadares, do outro uma imensidão de mata e montanha, mais adiante, chapadas que apontam pra a divisa de Minas com Bahia. Sem contar o céu, infinitamente bonito do alto. E tinha muita gente lá em cima…
Ufa! Mais uma hora e meia de instruções e preparo. Equipamento ok. Roupas adequadas ok. Ficamos aguardando melhorar as condições do vento. Bem, não há como não falar da moça que me antecedeu. Não seguiu o comando corretamente e ralou o joelho durante o treinamento. Pensei: esta vai desistir. E não desistiu. Voou bonito no azul.
Chegou a minha vez. Instruções repassadas: o que compete a mim no vôo? Respirar fundo, correr 10 segundos na decolagem, segurar o bastão da câmara e, a regra principal, qual? “não fazer mais nada, a não ser me obedecer””. Entendido! O Remult observou em cada direção (não lembro se norte/sul ou leste/oeste) a condição do vento, intervalos e intensidade. Fez testes e olhou a medição da biruta, pediu ajuda ao seu auxiliar e me perguntou: “tá pronto?” “É agora! Vamos?” Fomos. O vento bateu mais forte. Foram 8 passos correndo e o paraglaider nos levou pra cima. Voamos, por exatos 17 minutos, desde os quase 1.300 metros de altitute até o chão, às margens do Rio Doce.
Dificil narrar uma vivência assim. Só você vivenciando pra saber. Talvez eu não saiba explicar ou não responda à curiosidade ou aos questionamentos que ouvi, de que isso era uma bobagem, infantil, irracional, que era jogar dinheiro e tempo fora, colocar-se em risco, como se não tivesse amor à vida. “Nem pensou nas suas filhas?” Foi bem ao contrário, pensei nelas o tempo todo.
É sério. Não me cabe dar satisfação ou respostas. Viver é risco. Sair de casa é risco. Voltar a noite é mais risco. A roda-gigante do parque, o Uber, a faixa de pedestre, a estrada. Claro que ninguém é besta de não se informar. Há informações. Voar rodeado por um enorme conjunto montanhoso tem riscos a mais. “Deu medo?” Claro! Beleza, riscos e medos, de modo concomitante: o vento que não se controla, o equipamento do parapente que exige técnica e precisão no manuseio, e, embora eu tenha contado com o profissionalismo de um instrutor que pratica este esporte e o ensina havia mais de 20 anos, o que eu concluí? Não sei. Mas tive uma intuição super evidente: quem enfrenta aquele tipo de medo real lá no alto, medo danado de algo dar errado, pode enfrentar qualquer outro medo. Conhecer riscos e medos nos fortalece para tentar encarar situações que nos afligem, controlar-se, administrar cada situação e até, quiçá, superar medos, dos bobos aos monstros.
Cada pessoa reage de um jeito, me dizia o professor durante o vôo. Uns gritam, falam coisas bonitas, outros choram. Uns riem o tempo todo, outros cantam, há quem faça oração e quem declare amor, quem pede perdão, tem de tudo! É única a experiência, seja por 12, 15, 20 minutos.
E quanto a mim?
De lá, vendo a imensidão de meu país, continente, natureza, céu, estradas, nuvens e inclusive o maltratado Rio Doce, a gente nota nossa pequenez e sente nossa grandeza, que coexistem. O belo não anula o risco, a segurança nunca acaba com o medo. Sem o medo, seria dispensada. Mas, uma vez encarado de frente o medo de voar, a gente se convence que pode encarar o medo de falar, de planejar viagens, de contrapor opiniões, de se posicionar com firmeza, de curtir sua vida, de AMAR, amar sem receio, de conviver com os iguais, de conviver com os diferentes, de olhar para dentro de si, de radicalizar a empatia, de expor, escancarar para os outros o que há de melhor em si e principalmente se convencer a ser exemplo para quem tá perto. Dá pra mostrar quem você é, se transparecer pra suas filhas, filhos, sobrinhos, netos, além de selfies, fotos e videos. E dizer pras mais novas e os mais novos, que te observam: não aceite os limites que o mundo queira impor. Vá em busca de seus sonhos. Mesmo que existam medos e riscos, há beleza também!
Ahh! Siiimm! E o mais importante, lá do alto, trocando ideias com o Remult, tomei coragem e joguei. Joguei fora, tal como papel picado, bem picado, com toda força, os arquivos onde estavam “salvos” a repressão, que um dia proibiu diversas vontades, o controle, que gerou angústias e tristezas, e que agora não farão mais sentido, são passado. E arremessei na montanha um pen drive onde estavam as pastas de boicotes e julgamentos, já era, espalhei no vento, acredite, impossível de se recolher! Faça isso: deleta! Manda pra lixeira tudo isso. E, se os medos (que continuarão existindo) ainda te encostarem contra as cordas, lute, decole, voe!
Cleyton W. Borges - Abril/2020