QUATRO SERTÕES

QUATRO SERTÕES

*Rangel Alves da Costa

Sou divinamente agraciado por haver nascido em solo sagrado de um sertão amado. Minha pátria é sertaneja, minha nação é sertaneja, meu país é o sertão. Ninguém mais noutro lugar nasce com história tão esplendorosa quanto a sertaneja. Nos caminhos que eu caminho um dia passou Antônio Conselheiro, Lampião, Frei Damião das Missões, Zé de Julião, Dona Zefa da Guia, Alcino de havaianas... Vou ao Alto de João Paulo, ao Poço de Cima, ao Curralinho, a Maranduba, a Areias, a Angico, a Queimadas, a Riacho Largo... E quanto mais caminho mais tenho vontade de caminhar, de viver, de sentir de perto e dentro da alma e do coração este sertão. A velha senhora me recebe com alegria, “Parece com Alcino, você é filho de Alcino, meu filho?”, ela indaga enquanto puxa o tamborete. O velho sertanejo já está à porteira quando da chegada. De início, com poucas palavras, mas depois passando na voz as contas de um rosário inteiro de causos, histórias e proseados... E pelos beirais da estrada, pertinho dos tufos de mato, eu vou encontrando e dialogando com mandacarus, xiquexiques, facheiros, jurubebas, pedras, espinhos e flores do campo... Há um mundo bem ali que precisa ser conhecido. A cidade, talvez, seja apenas para viver, mas o conhecimento maior está mesmo depois da curva da estrada, mais além do caminho. E que não me canso de procurar!

Sempre entristeço ante o silêncio melancólico das casas tristes nos beirais das estradas. Portas e janelas fechadas, sem cheiro de café torrado ou de tripa de porco torrando no fogão de lenha. Procuro pelo menino Zezim, procuro pela menina Joaninha. Mas nada. Nem um cachorro magro nem a voz de um papagaio falador. Murchou a bela flor que outrora era avistada no umbral da janela. Esturricou a planta que antes descia pelo caqueiro pendendo no pé de pau. Tenho vontade de ir até lá e bater à porta. Oi de casa, oi de casa! Chamar assim. Desisto, enfim. E sigo pelos meus sertões em busca de portas abertas e daquilo que me dê alegria. Zezim, onde tá você? Joaninha, onde tá você? É o que pergunto em meu pensamento. E entristeço e choro. E silencioso pranteio a dor de todas as ausências do mundo!

Dona Tibúrcia gostava de ouvir o sino da igrejinha tocar quando a boca da noite já estava aberta. A escuridão chegando com aquele badalar solene lhe fazia mais esperançosa e cheia de fé. Gostava daquele ecoar do sino, mas nem tanto assim. E tudo por causa da comoção que logo lhe tomava o peito com cada som que ouvia. Mais ainda quando, ajoelhada perante o velho oratório, rezava pelos seus vivos e seus mortos e a luz da vela lhe parecia sorrir ou chorar. “Pai Nosso que estais no céu...”, e então sua mente reencontrava o rosto de sua mãe como numa névoa de luz. “Creio em Deus Pai, Todo-Poderoso, criador do céu e da terra...”, e então sentia como se alguém partido tão jovem lhe chegasse passando a mão sobre seus cabelos. Após as orações, de cabeça baixa, contrita, mãos entrelaçadas na força da fé, simplesmente deixava que todos chegassem perto de si. Quanta saudade, quanta saudade, quanta saudade! Levantava o rosto envelhecido e encharcado de lágrimas e perante o luzir da chama, outra face parecia avistar: um sorriso lindo e perfeito de seu Deus de Fé. Suspirava, estava refeita, ou parecia. “Que nunca me falte meu Deus, que proteja os meus aqui na terra e nos céus. Amém!”, e então fazia o sinal da cruz para retornar aos seus ofícios no lar. O cuscuz estava pronto, os ovos na frigideira, o café no bule, bastava colocar sobre a mesa. Seguia até a porta para avistar o mundo e dizer: “Que a noite seja um manto iluminado pela paz de Nosso Senhor Jesus Cristo. Amém Senhor da Lua. Amém!”.

O restante da noite chorou por causa de um sonho terrível e agonizante. Seu sertão não era mais sertão, aquele seu mundo era outro mundo. Ouvia apitos, gritos, buzinas, ribombos, os sons mais assustadores. Não ouviu, em nenhum momento sequer, o cachorro magro latindo, o gado berrante, o cavalo relinchando, muito menos o cantar do galo nem o chiado da fervura de banha de porco na estaladeira em riba do fogão de lenha. Correu à porta da frente e a escancarou para ter certeza de que não estava noutro lugar. Ainda era madrugada escurecida, silenciosa, com uma lua vaga entre os escondidos das nuvens. A brisa daquela hora lhe chegava como remédio bom. Respirava e suspirava seu sertão. Ainda bem, disse a si mesmo. De repente o galo cantou. E quando o galo canta é sinal de começo de tudo, ainda que o sertanejo comece a cantar sua luta bem antes do canto de qualquer galo. Lavou o resto na cuia, afastou de si todo o temor existente. Benzeu-se num ramo de catingueira, afagou o cachorro que logo chegou a seus pés. Estava feliz, contente. Seu mundo era aquele ali, era outro não. Caminhou em direção ao quintal, juntou lenha no fogão e logo as chamas faziam o café borbulhar. Procurou na despensa um naco de preá da noite passada, levou a carne magra e seca ao braseiro e depois jogou por cima de um punhado de farinha. Bebeu do café, mordeu a perna do preá, agradeceu a Deus. Lançou mão do cantil, trouxe para si o embornal, apanhou seu chapéu de couro, vestiu sua roupa surrada, calçou seu roló todo troncho e saiu para o lado de fora. A vaquinha pastava por ali, o jumento se escondia num canto, a malhada era um galinheiro só. Levantou as mãos para o alto e disse, quase num grito sem medo de ser ouvido: Meu Senhor Jesus Cristo, meu Padim Ciço e Frei Damião, que nada em mim seja vão na luta nesse sertão!

Escritor

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