HERÓIS DA TERRA DO SOL

HERÓIS DA TERRA DO SOL

*Rangel Alves da Costa

Os heróis nem sempre são gestados pelos livros de história ou pelos feitos tidos diferenciados dos homens comuns. Muitas vezes, por serem pessoas demasiadamente comuns, são tidas até sem o devido reconhecimento.

Mas então desponta a face de seu verdadeiro heroísmo: o anonimato, porém de vivência em bravura tamanha que não há como deixar de reconhecer sua distinção. Surgem, assim, os heróis da terra. às vezes continuam anônimos. Outras vezes ganham as páginas da posteridade.

Há bravura maior que o do vaqueiro em meio ao toco de pau e aos pontiagudos espinhos das matas e catingueiras?

Há denodo maior que arar a terra seca e depois do trabalho se dar ao ofício da prece, da oração e da promessa, para que a chuva chegue e a semente seja lançada?

Há coragem maior que a do bravo caçador que adentra os escuros da mata em busca da caça para alimentar a família?

Há esforço maior que o do lavrador, de enxada ou foice à mão, sobre o chão rachado de calor e debaixo da fornalha do sol?

Há persistência maior que a do pobre homem da terra que replanta a planta morta e depois ainda faz renascer a esperança de colher grão?

Há heroísmo maior que sofrer o sofrimento do bicho na pele e no osso, que chorar a mesma lágrima do animal, que berrar por dentro o mesmo berro de dor daquele na desvalia da fome e da sede?

Há intrepidez maior que deixar a panela vazia, a filharada esperando qualquer “de comer”, e no mato adentrar em busca de um preá escondido nas locas das pedras?

Há reinado maior que o do pedacinho de chão sertanejo, onde reis e rainhas dividem na luta as esperanças de dias melhores, ainda que o sofrimento chegue dia após dia?

Há heroísmo maior que se manter com caráter, respeito e moral, ainda que pelos arredores voejem os abutres da política e dos assistencialismos em troca de voto?

Todos são heróis, são sertanejos de excepcionalidades indescritíveis. De nobreza inigualável é a vida do sertanejo, do homem da terra, do mato, dos escondidos, das distâncias matutas.

E todos são igualmente heróis, bravos guerreiros, fulgurantes Ulisses em Odisseia. Na história e no cotidiano sertanejo, não há coadjuvante, não há personagem de segundo plano no seu enredo e trama.

Todos, indistintamente, são protagonistas, atores principais nas páginas reais de uma epopeia chamada existência. De uma saga chamada sobrevivência.

No livro-sertão, cada personagem possui importância igual, cada um influencia na gestação de uma realidade a muitos desconhecida e até incompreendida, mas sempre tão comovida e comovente.

Além deste pedestal de lutas e vitórias, de sofrimentos e inglórias, há de se reconhecer o heroísmo em cada um, em cada ser nascido e vivente no mundo-sertão. Todos são, pois, heróis sertanejos. Não existe o sertanejo comum, o reles sertanejo, o sertanejo desvalido de tudo.

Mesmo na pobreza e magrez há o heroísmo da sobrevivência, mesmo na carência e no sofrimento há o heroísmo da luta por dias melhores, mesmo na angústia pela mesa sem prato e pelo prato vazio há o heroísmo dá invenção do viver, mesmo na lágrima que cai escondida e na prece que nunca é ouvida há o heroísmo pela abnegação da esperança incontida.

Há o heroísmo na acumulação de riquezas em meio hostil. Há o heroísmo na casa bonita e no móvel da sala, vez que sempre um sonho realizado. Há heroísmo no veículo na garagem e no sítio para repouso e estadia, vez que nascidos de cada pingo de suor. Mas outros heróis tão reais que chegam a assemelhar a deuses e semideuses de um Olimpo Matuto.

Mateiros, roceiros, pequenos agricultores, vaqueiros, autônomos, vendedores, pescadores, fateiras, varredoras de rua, garis, lenhadores, coureiros, bordadeiras, rendeiras, artesãos, doceiras, lavadoras de roupas, pedreiros, serventes, caçadores, feirantes, beatas, missionários, benzedeiras, rezadores, todos, enfim.

Há imenso heroísmo numa gente que vive distante, escondida, oculta, vivendo seus dias apenas perante seus mundos. Uma gente em casebres, em toscas moradias, e que ainda bebe água de pote e cozinha em fogão de lenha.

Mas também na bravura de uma gente que foi além da normalidade. Pessoas com sangue no olho ou rosários em mãos, sujeitos de valentia ou rebeldia, e que foram além de suas portas para enfrentar com outras armas as realidades apresentadas.

Lampião foi herói na jornada, Padre Cícero e Frei Damião heróis nas suas missões de fé, Antônio Conselheiro no seu desvario consciente por um mundo humanizado através do trabalho e da religião.

Gonzagão foi herói, Dominguinhos também. Mas também Tião, Bastião, Jucundina, Luzia, Timóteo, Pedro, João, Bastiana, Porcina, Minervina. Heróis da luta, do suor, da prece, da oração, da persistência, da vela acesa, do rosário nas mãos.

Aquela heroína que encontrei no Assentamento Madre Teresa de Calcutá: debaixo do sol, voltando da mata e carregando na força dos braços uma carrada de toco de pau para fazer lenha. Que heroína maior desse mundo-sertão!

Heróis como eu e você, que sertanejos somos sem jamais abdicar desse orgulho maior!

Escritor

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