O EU QUE SE É SEM SER DITO
 
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Por Leont Etiel
 
Ser quem não é, pode alguém ser? A dúvida cantada pelo lusitano Sérgio Godinho alcança estatuto ontológico que, no versado e no seu inverso, é razão de incerteza sobre o devir.
A propósito, as atiladas páginas que a pena de Júlio Dinis fez vir a lume, em Uma Família Inglesa, anda a braços com uma inquietação ontológica semelhante. O lado “não eu do eu” que somos como persona pública.
Há uma parte oculta do nosso mundo interior que - para desespero dos manuais de autoajuda – é sempre inacessível a olhos outros. Nela, refugiam-se muitos segredos do eu para o eu. Tais segredos são observados, por cada um, em operações mentais breves, mediante os incontroláveis movimentos do pensamento. Por vezes, ao se perceber que eles são avistados, logo se procura fazer com que o pensamento deambule por outras paragens.

E há motivos para esse desvio, pois há perfumes tão sutis que, uma vez abertos os vasos que os contêm, quase instantaneamente eles se dissipam pela atmosfera. Por isso, a prosa dinisiana é categórica: guarde cada um para si essa parte do pensamento, que não pode separar-se de nós sem que nós próprios a desconheçamos. Suposições que alimentam o nosso pensamento podem revelar-se tão-somente ideias infundadas. Não nasceram senão para viver presas à alma, de cuja essência elas parecem receber vida.
Quer dizer, são como delicadas algas marinhas cuja textura tenuíssima se expande na água em formosas arborizações iludindo as visões dos que, encantados pela aparência, as arrancam de lá. Fora do ambiente em que vivem, cedo, antes de se fazer noite, mirram e deformam.
É necessário ir muito além do imediato, até porque os infortúnios e misérias da vida advêm, muitas vezes, não da funesta influência do “mal”, de forma unilateral, mas da ilusão do aparente. Um “mal unilateral” pode ter lá as suas dificuldades para consumar os seus propósitos, se encontrar resistência. No alto mar, um vento dominante pode governar o movimento e a derrota de um navio, mas é necessário que seja extrema a sua violência para que ele, por si só, faça soçobrar. Contudo, penetre o vaso mais potente no seio desses redemoinhos que formam os ventos encontrados, e a submersão será quase inevitável. Nos ventos da ilusão do aparente, as tempestades se originam.   
Terminemos regressando ao princípio. Alguém ser quem não é. Trata-se de uma vivência intrínseca ao mundo interior de cada um. O cerne, a subjetividade, o pronunciar e praticar o interdito. Inquietação ontológica nos vislumbres da existência. Nos cumes da vivência, a resposta encontrada. Em suma, do si para si, a palavra de Fernando Pessoa: És feliz porque és assim/todo o nada que és teu/eu vejo-me e estou sem mim/conheço-me e não sou eu.