O mirante

Diante da rotina agitada que se vive, nada melhor do que o período de férias para se ter um segundo de sossego que seja, sem os compromissos profissionais de todo o ano. Aquele que não espera ansiosamente por esse momento anual, a fim de recarregar as baterias do corpo e da alma, me desculpe, ignora a própria existência e, no mínimo, reside sabe lá Deus onde! Na Terra, não deve ser.

Em minhas viagens de verão, como agora, procuro encontrar tempo também para certas excursões, porque chega uma hora em que os livros cansam, e o piano precisa dar trégua aos meus dedos, senão estes vão dar trabalho aos tendões, que podem sofrer uma baita inflamação articular, mais conhecida como tendinite. Em tem mais um detalhe: em se tratando de um instrumento musical de difícil transporte, nem que eu quisesse, poderia levá-lo aos passeios turísticos ou para as hospedagens agendadas, nem mesmo para tocar (quem sabe!) uma romântica canção para a minha amada com quem contraí bodas, fechando o ano passado com chave de ouro. Ah, o amor! Os livros ainda são mais maleáveis e se permitem viajar em malas e caixas dos mais variados tipos sem reclamarem do desconforto a que são submetidos incondicionalmente.

O fato é que, de quando em quando, não me servem de companhia. E troco-os por minha amada esposa e pelas viagens país a fora para alimentar a minha curiosidade em descobrir as belezas desta ilha chamada Brasil. Eu confesso que sou preguiçoso para programar excursões turísticas; já minha esposa é mais desenrolada para esses assuntos, e eu acabo, no fim das contas, aprendendo com ela. Após o Réveillon em Paulo Afonso/BA, optamos por contratar uma agência de turismo para um passeio até alguns municípios de Alagoas.

Evidentemente, percorreríamos os cânions do Rio São Francisco a bordo de algum Catamarã. Dito e feito. Uma visão quase paradisíaca se não fosse o forte calor e uma parada de quase 02h30min em uma das grandes piscinas improvisadas no leito do rio para os passageiros. Eu não quis me arriscar nesses clubes artificiais. Minha amada seguiu o meu exemplo. Uma senhora, a bordo, foi enfática:

- Deus me livre! Só nesse início aí são 10m de fundura. Imagine o resto...

- Que resto?

- 90m pra baixo, somando 100.

O medo aumentou, e não descemos do Catamarã. Ficamos vendo a algazarra dos demais integrantes a beberem, a petiscarem comidas típicas da região e a se refrescarem, após a ativa exposição dos corpos a aproximadamente 40 graus de temperatura. O nosso único entretenimento foi contemplar a alegria deles e beliscar batatas fritas enquanto chegávamos ao nosso destino: Restaurante Castanhos. Por volta das 14h30min, a embarcação aportou. Íamos saindo com todo o cuidado para não cairmos no leito do rio, temido por seus redemoinhos que já levaram vidas, inclusive a do ator Domingos Montagner, durante as gravações da telenovela da Globo “Velho Chico”, em Canindé de São Francisco (SE).

Tarde corrida. Tivemos apenas 01h30min para almoçarmos e deslumbrarmos a paisagem sertaneja, banhada pelos cânions. As inúmeras curvas que o rio dá mais parecem as curvas da vida, as quais sempre temos de cruzar, e nunca sabemos exatamente se são as mais adequadas, consoante os nossos propósitos. Era assim que eu me via. Cercado por um labirinto de falésias e rochedos em constante erosão fluvial, invadiu-me uma sensação de que algo colossal, titânico queria se impor diante dos meus olhos. É essa imagem solar do Rio São Francisco que nos deixa praticamente aos seus pés, sem nada podermos fazer para alterá-la. O rio nos conduz por todo o vale; o rio também pode nos surpreender com os seus segredos há décadas muito bem escondidos. Tive receio do rio. Receio de ele nos tragar sem piedade quando bem quisesse. Receio de ele nos revelar sua fúria, já que nós usamos e abusamos de suas encostas, de seus caminhos. Uma visão turva e misteriosa toma conta de mim e depois vai embora, como se o rio experimentasse todos os meus sentidos.

Transcorrido o horário do almoço no Restaurante Castanhos, fomos contemplar mais o leito do rio. Outras piscinas naturais e artificiais favoreciam um revezamento de banhistas, além de duchas ao ar livre para auxiliarem na retirada do cloro, impregnado no corpo físico e nas roupas de banho. Segui o ritual de todo banhista: primeiro, o banho no rio; segundo, nas bicas de água canalizada. Evitei as piscinas artificiais. Com muita gente se lavando ao mesmo tempo, os riscos de contrairmos alguma enfermidade na pele é alto, especialmente por desconhecermos o real tratamento que a água tem naquele espaço. Aliás, por falar em espaços, gosto muito de observá-los todas as vezes que os vislumbro pela primeira vez.

O Castanhos é um balneário a céu aberto. A junção de dois habitats é o que se vê numa demonstração clara de que a sustentabilidade é perfeitamente possível. Uma espécie de hotel fazenda foi construída para oferecer maior comodidade aos turistas. Passeios de lancha e de canoa por todo o São Francisco ficam à disposição dos visitantes, sempre que são requisitados. Um ambiente de convívio com a natureza e o homem é o que se testemunha, levando o turista a sentir-se em casa com tanto conforto e bem-estar. Nesse estado de graça, um refúgio, sim, foi o mais peculiar. Caminhando-se mais à frente das piscinas artificiais, constatei a existência de um mirante. Em questão de segundos, pude verificar a paisagem do rio, um panorama idílico, que me lembrou as cenas do filme “1492 - A conquista do paraíso” (1992). O entardecer endossou as imagens paradisíacas a ponto de contemplarmos uma pintura ou um mosaico. Estarrecedor e ao mesmo tempo belo! Vi-me dentro de um quadro impressionista, como aqueles de Munch. Não tive coragem de aproximar-me, talvez por desconfiança. Vai que o rio cisma comigo e resolve tragar-me! Não sei por que fiquei com essa impressão, em parte negativa, do São Francisco. É que o rio, visto, principalmente deste pequeno mirante do Restaurante Castanhos, num local onde veranistas se encontravam banhando-se nas piscinas artificiais, ganha mais em volume e proporção, o que produz o efeito ótico e ilusório de que uma grande enchente pode acontecer, engolindo como um Tsunami tudo o que estiver pela frente. Parece loucura, mas foi a impressão que eu tive. A visão panorâmica tem esse lado perturbador, que só corações muito sensíveis são capazes de entender. Por eu ter o dom de enxergar um outro sentido para as coisas, algo bastante sugestivo (e as cores trabalham muito bem o visual) se descreveu para mim. Certamente, algo que eu jamais tinha visto. Deve ser por isso que muitos dizem que é bom viajar, desbravar o que ninguém antes desbravou.

A verdade é que o mirante me transmitiu um alumbramento. Às vezes, tenho essas visões que não costumo comentar, porque podem ser enganos da mente, sem muita importância; mas que, por sua vez, também podem revelar informações ao espírito. Temos tendência a imaginar algo maravilhoso e precisamos ter cuidado com isso. Contudo, Freud foi o pioneiro a estudar o inconsciente, e creio que o mirante foi um objeto simbólico que queria me mostrar que nem tudo é o que parece (ou quase tudo é o que parece?!). São poucas as pessoas que têm tal percepção. Se é um talento, como disse antes, não sei. Se é a manifestação de algum distúrbio psíquico, também não sei. Simplesmente, está longe de mim considerar como uma postura anormal. Prefiro entendê-la como uma atitude de quem escolhe pensar, primeiramente, em hipóteses, para depois estar seguro na hora de julgar o fenômeno em si e qual a representatividade que este pode ter para a vida do próprio sujeito. Num mundo de contradições e cada vez mais complexo, no qual tudo pode acontecer, é preciso cautela, estudo, análise, comparação para que passado, presente e futuro tenham conexão e coerência. Do contrário, arriscamo-nos a perder o senso, e o essencial – o equilíbrio entre a razão e o sentimento. Não é nada fácil lidar com essa balança.

Paulo Afonso, 09 de janeiro de 2020.

Paulo Caldas Neto
Enviado por Paulo Caldas Neto em 09/01/2020
Código do texto: T6837796
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