melhor esquecer esse assunto, a gente nunca se entende mesmo

Então, pois é. Fui na padaria. Tava lotado, gente no balcão, gente comendo lanche, muita gente na fila do pão. Domingo de manhã é assim. "Quem sou eu na fila do pão" é uma frasezinha comum que muitas pessoas falam. Bobagem. Pensei no pão de queijo com café puro ali mesmo, mas não. Dei uma olhada no jogo na TV, peguei um requeijão e uns pãezinhos frescos, acabados de sair do forno, mas antes, ainda na fila pra pedir (e tem outra fila pra pagar...rss) eu passei a prestar um pouco mais de atenção em quem tava ali perto. Na minha frente, um menino de uns 12 anos, camisa de time europeu, jogando no tablet... não tirava os olhos da tela... Um casal com cara amarrada, com diálogo truncado, monosilábico. Um senhor falando no celular, bravo. Atrás de mim,  uma moça de uns 40 anos, sorriso estampado, tatuagens no pescoço e no braço, vestido florido, vibe leve, brinco de madeira, sandália verde, uma alegria em torno si, será? Poderia ser só uma impressão minha. E dois rapazes atrás dela conversando alto, um discordando do outro, algo ligado a horários e rotina de casa, um parecia cobrar do outro, em tom de descontraído, mas soou como cobrança de presença, enfim, cada um com seus problemas.

Pequei meu pão.

Ela foi pra outra área da padoca.

Eles vieram praticamente junto comigo pro caixa.

Confesso: não queria ouvir mais as queixas de um pro outro. Digitei a senha, dispensei a via e saí. Mas foi mesmo sem querer que eu ouvi a frase-catilho: "melhor esquecer esse assunto, a gente nunca se entende mesmo".

E por que "frase-gatilho"? Como eu voltei pra casa a pé, musiquinha no fone de ouvido e dia bonito de sol... aquela frase me fez repensar rapidamente algumas verdades, nem tão verdades assim. 

Tô lendo, vendo vídeos e escutado muito ultimamente sobre "felicidade", como aproveitar o dia, viver o hoje, arriscar-se, saber ser feliz, valorizar o momento... tudo isso, maaas... a constatação é uma bomba: as teorias podem estar muito longe da realidade. Sim. Essa felicidade aí pode ser ilusória. Deixa eu tentar explicar. Voltando à padaria: Eu não conheço aquelas pessoas. Podiam ser um casal de namorados, podem ser amigos? Não conheço o menino da fila, nem a dupla monosilábica, nem o senhor do celular, nem a moça do vestido. 

Não teria condição de falar da vida de nenhum. Assim como é extremamente difícil falar algo ligado a "ser feliz" que possa servir como regra para pessoas tão diversas, inclusive desconhecidas. Eu pergunto: é possível descrever ou concluir sobre uma questão tão, mas tão pessoal? Ainda mais a felicidade alheia? Evidente que não existe regra. Óbvio que cada pessoa tem sua trajetória, cada história é única e só quem vive pode responder. 

Já em casa, o café me enche de pergunta que não quero nem preciso responder. O meu ponto crucial não é questionar essa diversidade, ou esse enorme rol de respostas possíveis sobre o que é "estar bem", "ser feliz", "viver o dia", "curtir a alegria do momento". Não me apetece, hoje, falar disso. O que a frase que escutei na padaria me desperta é o seguinte, vamos lá: a gente derrapa, escorrega e cai, toda hora, todo mundo. Fugir disso, é se enganar. A cada momento temos tristezas e alegrias se alternando a nosso redor. Pequenas alegrias, pequenas tristezas. Faz parte. Quando eu escuto "melhor esquecer esse assunto", eu percebo uma falsa escolha aí... de deixar de lado, por que incomoda... será que é isso? Opção pelo que nos deixa mais confortável? Arquivar a conversa? Não sei...

A felicidade do livro, do coach, da palestra, do insta, da rede e da selfie existe. Mas cuidado... ela não vem assim, super disponível e tão imediata. Nem brota do nada. Pode saber que não. A felicidade, eu apostaria, vez em quando paira no ar sim. Na música, no sorriso, no papel anotado, escondida, camuflada. Siiimm. Eu quero te falar bem franco e reto: procura, escuta, tenta ver aqui ou acolá, vá tateando, sente. E, acima de tudo, observa: esse troço de felicidade é uma mistura danada de tudo. A parte final da frase do rapaz, "a gente nunca se entende mesmo" soa como real, verdadeira, mas aponta um lance de "já era" ou "não há o que fazer"... principalmente no "nunca". Complicado. E novamente, indica que, apesar de adiar a conversa, pausar a discussão... aparece um estranho conformismo do tipo, tá ruim, mas tá bom. Vamos levando... deixa como tá, pra ver como é que fica. Tudo certo, nada resolvido.

Ela é dificinha mesmo, ela, a felicidade... Cada um sabe onde o calo aperta. A vida ensina o tempo e o tom. Dizem que o universo se encarrega de providenciar, como diria aquela minha amiga cearense. 

Sou pequeno ainda no mundo das palavras e sentidos, não sei dizer tanto, por mim só. A todo momento aprendo e recorro outros olhares e expressões.

Adélia Prado dá uma cutucada quando diz que a "insistência no cotidiano é porque a gente só tem ele: é muito difícil a pessoa se dar conta de que todos nós só temos o cotidiano, que é absolutamente ordinário (ele não é extraordinário)". Ela ensina, poeticamente. Adélia e o cotidiano são simples e diretos.

"É o que temos pra hoje", como falamos entre amigos e amigas.

Não tenho como não mergulhar de novo nas palavras de Adélia:

"Neste exato momento do dia vinte de julho, de mil novecentos e setenta e seis, o céu é bruma, está frio, estou feia, acabo de receber um beijo pelo correio. Quarenta anos: não quero faca nem queijo. Quero a fome."

E eu?

Mais do que alimento, quero ter a vontade, o motivo e o desejo de curtir esse café da manhã.

Bom domingo e... quem somos nós na fila do pão?

Cleyton Borges (Crônicas no Rascunho)
Enviado por Cleyton Borges (Crônicas no Rascunho) em 29/10/2019
Reeditado em 29/10/2019
Código do texto: T6782331
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