O olhar profundo

Ontem, 19/10, após gozar o segundo dia de passagem em meu apartamento, no bairro de Lagoa Nova, decidi retomar as minhas idas ao cinema, hábito que tenho desde a adolescência, dado que a sétima arte tem também um canto guardado em meu coração, assim como a música e a literatura. Depois que conheci a mulher com quem pretendo me casar este ano, a paixão por filmes cresceu cada vez mais, de modo que nós dois já adotamos, como entretenimento, o canal Netflix para constantemente acompanharmos as novas séries e os sucessos cinematográficos que estão na moda. Não sou nenhum roteirista, nem crítico de cinema; contudo, arrisco, vez ou outra, certos comentários despretensiosos, porque, é óbvio, ninguém é tonto o suficiente para não enxergar um palmo na frente do nariz.

Escolhi para ver, no Cinemark, do Shopping Midway Mall, “O Coringa”, o filme mais comentado no momento. Eu já conhecia o personagem das séries do Batman, especialmente da primeira versão do início dos anos 90, que eu só pude acompanhar por fita cassete (naquele tempo ainda não havia o DVD, muito menos o Youtube), porque, já com 09 anos de idade, eu ainda tinha medo do escurinho do cinema. Antes que o leitor pense maldades, vou logo avisando: achava que o escuro era habitado por seres das trevas e não por gente ousada, querendo namorar, visto que, no meu tempo, a infância não era um período precoce como hoje.

Voltando ao filme. Esperava uma violência extrema, conforme estava escrito na sinopse, disponibilizada no site da empresa cinematográfica, e o que vi foi uma violência comum das grandes cidades e vinda de um alguém que só queria ser respeitado na sua essência. Porém, a fita tem o seu lado bom, como tudo na vida. Serve para refletirmos que o crime não compensa, mas que, por trás de um coração “maligno”, há sempre um pedido de socorro. O Coringa talvez seja a representação do nosso lado frágil, carente de afeto e de atenção. Quantas e quantas vezes não fui incompreendido? Aliás, todo nós. No mundo atual e no Brasil atual, não preciso mencionar o clima de polarização política que leva a isso. De um lado, uns querem impor as suas ideias e ações; do outro, a mesma coisa. Entendimento, nenhum. O que há são as duas faces do autoritarismo; desta vez, mais civil, pois nem os militares nos amedrontam tanto quanto antigamente. É a impressão que fica. No enredo, ricos são vistos como os vilões; pobres, como os mocinhos, incluindo aí o próprio Coringa.

Em meio aos motins urbanos, que se iniciam após o primeiro assassinato, cometido pelo personagem principal, e cujas vítimas são jovens inconsequentes da elite de Gotham City, o clima de polarização esquenta, e o Coringa é visto como herói pelos pobres. No entanto, o que mais impressiona na (des)construção do personagem é o seu lado humano, sensível para ver o que está bem diante de nossos olhos; um dom que não é qualquer um que possui. Compreender para ele era fácil; para os outros que o cercavam, não. Os desejos do Coringa tiveram de ser sublimados em prol do que a sociedade desejava, e esse pormenor, sim, é o estopim para que se desencadeie o conflito maior da trama. Também se mostra no filme que todo coração, por pior que seja, só quer uma segunda chance, a qual lhe é constantemente negada. Sei que toda regra tem exceções e não estou aqui levantando utopias, mesmo porque estas, a meu ver, funcionam para poucos casos diante da complexidade da natureza humana. É justamente por causa da complexidade do homem que não podemos enxergar somente um lado da moeda.

A visão maniqueísta é, desta vez, ignorada, e tem-se um ser cujo desespero é justificado pela dúvida em relação à própria identidade. Como sobreviver num mundo tão contraditório?! Num mundo em que jogar parece ser mais complicado do que se pensa, porque, a todo instante, é preciso se adaptar? O problema é que tal objetivo, muitas vezes, pode levar ao desânimo e ao desgaste. E quando não há quem oriente você quanto à meta que anseia alcançar, a angústia ganha proporções avassaladoras, e a tragédia é o fim mais certo. É, pois, compreensível toda a loucura do verdadeiro Coringa. Com o transcorrer do roteiro, o espectador vai relacionando os pontos, e a justificativa para o personagem ser quem é vai tendo unidade.

É impossível, para pessoas que têm o coração sensível ao mundo, muitíssimo observadoras, e com a capacidade de abstrair fatos, coisas e situações do dia a dia, não se identificar, em parte, com o Coringa. Como dito antes, por mais que haja sofrimento, incompreensão e desrespeito, nada justifica o crime. Porém, este poderá ser evitado se existir menos competitividade, políticas públicas e sociais que funcionem e, moralmente falando, comunhão. Tudo isso, é claro, tem como pré-requisito o olhar profundo. Exatamente o que você, leitor, acabou de ler. Se o que é banal não fosse relevante, as pequenas coisas da vida teriam, sim, relevância. Ao falar assim, refiro-me aos pequenos valores morais de hoje, infelizmente, esquecidos. Um deles (e talvez o maior) – a empatia. O reconhecimento das diferenças, das dificuldades e dos limites do outro, certamente, levaria qualquer um de nós a refletir o que é preciso ser feito para que a revolta, residente em nosso interior, fosse volatilizada. No vaivém dos tempos contemporâneos, na corrida pelo ter, posto que neste mundo de aparências o ter é o que importa, o ser é só uma base. Caso alguma extrusão se forme, toda a estrutura começa a desmoronar, provocando danos, possivelmente, irreversíveis.

No meu primeiro ofício, que é o educar, vivencio frequentemente casos em que o meu olhar profundo faz toda a diferença. É dessa forma que eu tento minimizar as dores dos outros, as feridas humanas, quando o Estado e a família se omitem. Disse-me uma ex-aluna e ex-orientanda, por ocasião de um e-mail enviado, parabenizando-me pelo dia dos professores, que tenho o poder de transformar. “Continue sempre assim. Orgulho de ter sido sua aluna”. Bom, não sei se acredito muito em transformar o outro, de tanto que já tentei e, em parte, implicou frustração. Devo ter conseguido, em parte, tal proeza. Não me lembro. O que sei é que me autotransformei e graças ao meu olhar profundo. Olhar primeiramente para dentro de si mesmo, para, em seguida, olhar para dentro do outro. É assim que deveras funciona. Somente o outro pode mudar se você se mudar. Seguindo o seu exemplo, ele se mudará também. Nada pode ser forçado, mas espontâneo. Daí, porque, quiçá, nunca gostei do termo “transformar” como uma ação atribuída unicamente a um sujeito agente. Passa a imagem de que você pode impor a quem quer que seja a sua vontade de mudança, que é uma ação. Gosto do termo “autotransformação”; o que me leva a pensar que o ponto de partida para tal ação está no sujeito paciente, que sintaticamente a sofre.

No meu segundo e terceiro ofícios, – a música e a literatura –, que exerço nas horas vagas, persisto no autoconhecimento como forma de lidar comigo mesmo e com os outros. A cada escrita de um texto musical ou de um texto verbal, eu não me perco, eu me reencontro. Nesse engajamento social, o compromisso de um mero comunicador situa-se adequadamente. O caráter sensitivo daquele que age vai sempre no caminho do bem-estar. De início, no seu próprio bem-estar, que, adiante, contagia. O olhar profundo é o fator fundamental para o empreendimento ter efeitos positivos, e a sociedade encontrar o seu lugar ao sol. É a minha missão. Indiretamente, creio, eu busco cumpri-la. O mais interessante é que eu sinto que a força da mudança me atinge mais intensamente do que aos outros. E tudo por causa de um só e simples ingrediente: o olhar profundo. Experimente, caro leitor. A primeira degustação pode parecer estranha; mas a segunda, a terceira, a quarta… Bom, podem lhe apresentar uma sensação estranha! Impossível contar! Só provando mesmo.

Natal, 20 de outubro de 2019.

Paulo Caldas Neto
Enviado por Paulo Caldas Neto em 27/10/2019
Código do texto: T6780763
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