A moça do celular, a vida alheia e os acasos da cena circundante
A crônica procura e encontra o cronista.
Naquele dia senti uma brisa ao sair de casa, diferente.
Tento identificar nos olhares, trejeitos, rosto, gestos e palavras das pessoas, o reflexo de um cotidiano escondido e o entendimento das coisas absurdas, engraçadas e simples da vida.
Filas em São Paulo, algo tão frequente. Ví um senhor lendo jornal tão atento... isso era mais comum anos atrás, pensei.
A MOÇA DO CELULAR
Ainda meio sonolento, nada me chamou mais a atenção do que a moça do celular. Ela tinha seus quarenta anos ou mais, roupa branca, cabelo preto, solto e lindo, bolsa bem discreta, sem relógio, sem brincos, batom em tom leve, tatuagem pequena no pulso, algum nome e um coração, tatuagem maior no antebraço, algo sobre anjos ou fadas, pulseira no braço direito, um pingente pequeno no pescoço, aparência jovial, um caderno (ou agenda) na mão. Enfermeira, Fisioterapeuta, Médica? Porque não ia de carro?
Diariamente, por mais de uma hora durante a manhã e uma hora e vinte à noite, exerço a nobre função de observador da vida alheia e dos acasos da cena circundante, quer seja na rua, nas filas, lotações ou metrô.
Foi fácil entender aquilo. A gente não pode fazer da ilusão, realidade, mas sim da realidade, uma ilusão. Como? Exemplo é o que não falta. Aquilo aconteceu logo cedo, foi mesmo algo... não sei falar... diferente, muito diferente.
Na hora tive a certeza que um fato assim poderia ser contado em forma de história não-real, dessas que a gente aproveita a inspiração original e depois simplesmente escreve. Afinal, são as histórias e as palavras que nos escolhem e não o inverso. A crônica procura e encontra o cronista.
Ela atendeu o celular como quem já estivesse esperando pelo chamado. Na primeiríssima vibração. E falou suavemente aliviada. Parecia que a sua conversa havia sido interrompida e agora retornava por meio do aparelho. De cara ela disse "Mas eu também queria te dizer o quanto te amo antes de sair... ontem a noite foi ótimo". Eu, bem ao seu lado, procurei ser discreto, mas não tive como não ouvir. Ela falava deveras alto. "Alguém como você não tem como não se amar". Um breve sorriso e continuou. "Claro que sim, imagina, sem problema nenhum..." Nesse instante, várias pessoas saltaram da lotação. Até pensei em mudar de lugar, mas continuei ali, do seu lado. Pensei. "Nem todos os casamentos são canoa-furada. Aquele era um casal legal, o cara devia ser um ótimo marido". Após outro leve sorriso, ela suspirou (ainda ao celular). "Adorei o lanche que você me preparou. Você sabe mesmo o meu gosto". Não tive dúvida, maridão nota 10 mesmo. "Ah! Outra coisa: o carro fica pronto amanhã". Explicado.
O CAOS DE SÃO PAULO REVELA INTUIÇÕES
Estava passando perto da estação Tatuapé.
De relance, olhei pro lado e vi alguns cachorros mexendo num lixo, numa rua que me lembrou o meu antigo caminho pra faculdade, na época que comecei a ir de moto... que ano era isso? 98? 99? Por aí. Como era tranquilo e bom. Eu e a minha XR200 vermelha, modelo 95, tudo de bom. Depois comecei a fazer uns caminhos alternativos, rotas novas, cada vez mais perdendo aulas e ganhando tempo pra descobrir lugares, pessoas, assuntos novos. Mesmo agora, anos depois, vejo o pessoal indo e vindo da universidade e recordo aquele que chamo de "o melhor estágio" da minha vida.
Olhei de novo pra rua e ví que o "trânsito" estava pior naquela manhã. E ela continuava ao celular: "Acho melhor você mesmo comprar o presente dela, você leva mais jeito pra escolher". Pensei: "É aniversário da filha".
Ela: "Pode ser... mas roupa, não! Quem sabe um presente diferente, pra ela colocar na estante, pra ela olhar e lembrar de nós..." e movimentou positivamente a cabeça dizendo: "isso.. perfeito. E não esquece do bolo de chocolate na padaria... pega também umas bexigas coloridas, ela vai gostar. Até mais tarde! Beijo, te amo!"
Quando o trânsito pára, a reação dos impacientes é automática. Sempre achei que isso só piora a situação, buzinas, xingamento, stress coletivo. Prefiro o pessoal do MP3 ou do cochilo. E tem também a turma que pratica a árdua missão da leitura em movimento.
Ví que ela escrevia um cartão, aproveitando as longas pausas no engavetamento confuso. A sua roupa branca trouxe à tona a lembrança do pessoal da faculdade que mais aparentava estudar e menos participava de agitação. A vida é uma experiência tão bonita e gratificante.
A SURPRESA NOS RESERVA ENCANTAMENTOS DIÁRIOS
Agora, passando no parque Dom Pedro, sempre aquela vista do Mercadão me impressionava, tanta gente... Centro da cidade e suas contradições.
Quando a lotação chegou no ponto final, veio-me, de súbito, a vontade de elogiar a moça do celular, pelo lindo casal que constituía com seu marido e pela filha que tinham.
Não titubiei e dei-lhe o elogio.
Ela abriu um belo sorriso, que por sinal alegrou ainda mais o meu dia e respondeu: "Eu falava com o meu filho, de 18 anos e pedi pra ele comprar o presente da minha mãe, sua avó, que hoje faz 65 anos"!
Esta crônica foi escrita em 2005.