Noite afora, do oitavo andar

Eu apago as luzes do apto e, como o 8.o andar* fica bem acima da luz dos postes, vejo melhor o Céu.

Está tarde. Luzes aos poucos se apagam nas janelas dos prédios vizinhos. Estrelas bem visíveis, coisa rara. É bonito ver o céu limpo assim, noite afora. Faz ir embora a quase-tristeza. E vem uma quase-beleza.

Acabo me deixando envolver nesse olhar para a São Paulo. Ohh cidade, eita mundão.

Mas essa cidade cansa a gente, fisicamente. E o corpo reclama sossego. Cansa a cabeça também. E o que é nos faria descansar? A que recorrer quando bate um cansaço assim? Tenho escutado com razão de que só dormir não basta. Como desligar?

Aviões passam minuto a minuto.

Ouço o barulho longínquo da Avenida. Eco de motores. Sempre carros acelerando disputando espaço com caminhões. Ave-Maria da Fumaça.

Oitavo andar.

Risos no apto ao lado. Como é bom esse riso-palavra, frase truncada, alguém não pára de rir. É uma voz feminina que ecoa num timbre ao tom da risada de outra pessoa. Sintonia total que nunca incomoda.

Mais vontade de desligar, deixar o corpo descansar...

Ouço barulho: cachorro da família do andar de cima. Criança chorando, talvez recém nascido. Aquele chorinho tão bom, novidade sempre boa.

Eis que um casal que sempre briga e grita. Se agridem. Vixe. Palavras feias, frases desconexas. A insegurança e a insistência no que já não é. Às vezes este casal parece estar numa reprise de novela ruim, daqueles capítulos mal escritos e roteiro tenebroso. Aff.. porque isso?

Coloco meu fone de ouvido? Às vezes rádio em qualquer estação já me acalma.

O chuveiro do apto do outro lado fica bem rente meu quarto. Alguém lá toma banho todo dia de madrugada, não sei se tá chegando ou saindo. E demora na água. A pessoa canta, mas não identifico a música. Cada um no seu quadrado.

A pergunta me vem novamente: como descansar? O maldito celular é teimoso. Observo o aparelho. Ele esquece de ser relógio ou despertador apenas. Quer ser (ilusoriamente) rede ou contato. Quer ser diálogo, quer gerar conversa. Esquece que é algoritmo apenas. Esquece que é mera propagação de combinações de sistemas e anúncios. Será? Não sei.

Da janela vejo a Vila, casas, prédios e luzes. Imagino quem mais estaria só, no meio a tanta gente? Quem mais? Cada um, cada uma no seu canto e no seu sossego. Na dor e delícia de ser o que é.

Cidade, me escuta: desliga e descanse. Porque eu, euzinho aqui, observando o avião na espera pelo pouso, envolto aos risos, brigas, choro, latido, canto e rotina da vizinhança, assim o farei. Boa noite noite bonita!

nota:

Narrei originalmente numa gravação de áudio, sim, da janela do oitavo andar.

Cleyton Borges (Crônicas no Rascunho)
Enviado por Cleyton Borges (Crônicas no Rascunho) em 06/10/2019
Código do texto: T6762258
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