Sobre as belezas ocultas da Capital. O catador de canções.
Algum tempo atrás eu podia jurar que estava certo. Como eu queria afirmar que a Capital é encantadora. A beleza não existe!
"Veloso, o sol não é tão bonito pra quem vem do Norte e vai dormir na rua"
Lendo aquela coletânea de textos e poesias em homenagem à São Paulo, veio à tona momentos simples dessa fase da minha vida vivida aqui na metrópole. E no ônibus, vendo as expressões de cada um, eu seguia lendo: "São Paulo é sonho feliz de cidade, onde tudo se concentra e desconcentra e centra tudo o que passa rápido. São Paulos, Marias, Josés e Antônios concentrados, nesse centro, onde o mundo corre. Corre, corre sempre pra cá, nada pára, nada para ninguém, tudo roda, tudo para alguém..."
e o jornal diz:
segunda-feira complicada com enchente, engarrafamento e morte na Capital" Ave-maria, gente comendo qualquer coisa caída no chão. Que fez esse lugar ser assim? Que coisa é essa, que diabo é esse?
Como foi novo e diferente saber que aquilo era possível de acontecer daquele jeito, na Capital. Chegamos no bar com o violão debaixo do braço, mas a idéia era mesmo jantar. O tiozinho, dono do bar pediu, enfático: toca logo uma do Roberto! Na terceira música do Roberto Carlos - ele cantando desafinado junto, alguém pagou a primeira cerveja. A gente tava em três, como costume, e, no outro dia seria batidão de reuniões o dia inteiro. O grupo em torno do violão cresceu logo e o repertório também - de sertanejo a forró, samba ao brega. Os mais de vinte em torno da nossa mesa brigavam pra pagar a próxima rodada: o copo deles tá vazio!
Escuto uma conversa do cobrador e alguém: "eita porra, se pudesse mandava todo mundo pr'aquele lugar e o primeiro era o patrão... disgramado".
Interesse em curtir mais o momento. Pra quem voltou pra casa 6:20, o chuveiro do Dom Felipe Hotel (Felipão) foi melhor que dormir até 7:40 e sair pra trabalhar, em pleno domingo. Momento de alegria rara, bem parecida com o interior. Encontro espontâneo de não-paulistanos. O bar e o tiozinho ficaram apelidados de "Roberto Carlos". Vamos lá no Roberto Carlos, perto do Estadão? Dali alguns meses fechou.
Passei a folha do livro aleatoriamente. ..."milhões de milhares de rostos, milhares de milhões de caras, ninguém tem cara, ninguém vê rosto, na rua, na hora da briga, cidade que abriga e obriga a correr. São Paulo desconcentra qualquer um e desconcerta Marias, Antonios, Paulos e Josés. Capital concreta, nesse centro, nesse pequeno mundo, epicentro central do episódio, epílogo, logo, epiderme, gole de pinga, conhague e leite quente, epidermia de cimento, de um sorriso amoroso e um flerte ciumento, é piada, e o pior é pinóia completa, pirou?"
Essa cidade engana, maltrata, mata devagarinho, faz o cabloco se sentir mal. Mas o pior: faz a gente se acostumar com essa desgraceira toda. E pra você?
Quando se mora em São Paulo você entende porque esses caras escrevem isso, pensei. Vi umas gravuras modernistas e lembrei da Toca dos Coelhos e da esquina do Corujão. Mais ou menos um ano e meio depois, a Liberdade já era reinante - o bairro e a sensação de ser livre.
Lembrei do bar, e o catador de canções roubou a cena:
A turma estava ampliada. Mais uma vez o violão estava a tira-colo. também com tanta gente assim que toca e canta. Por favor três cervejas, dois refrigerantes, dois sucos e copos pra nove. Alguém falou não-sei-que-lá com o garçom e ele respondeu não-sei-que-lá, não-sei-que-lá, mas acabou permitindo que se tocasse umas musiquinhas, baixo.
Menos de cinco minutos depois, e ele chegou. Parou, rodeou, observou e não disse nada. Um de nós: quer comer? Não quero comida, nem bebida, graças a Deus, o cigarro já larguei há muito tempo. Tô catando papelão e latinha na rua e na minha boca não ponha droga. Vou pagar um leite e se puder, toco esse violão uma coisinha pra alegrar. E tocou. Tocou. Tocou.
A mão suja de pegar coisa no lixo e a unha cheia de terra, a roupa rasgada e as rugas no rostos, assim como o cabelo alto, a barba branca longa e os dois sacos grandes -latinha e papelão, fizeram todo mundo duvidar. Será que vai tocar o quê? E com o olhar distante, jeito sereno, voz cansada, tocou e cantou Supertramp, Elton Jonh, Bee Gess, Elvis Presley e Pink Floyd, com inglês fluente. Tomou calmamente o leite e foi embora. Nessa noite, a gente não tomou o café da janta. Ainda durou alguns dias nosso abobamento ao falar do catador de violões.
E lí dois outros poemas, olhando pela janela embaçada da lotação. Um deles termina citando um verso de Belchior, mais ou menos assim, não lembro tudo: "eu não estou interessado em nenhuma teoria, em nenhuma fantasia nem no algo mais... amar e mudar as coisas não me interessam mais.... meu corpo que cai do oitavo andar, e a solidão das pessoas dessas capitais!" Realmente sons, palavras são navalhas. Cadê você, catador de violão?
O que faz a gente seguir? A certeza do poeta da Sul, do Racionais, quando canta: "até no lixão nasce flor"? Um dia gostaria de saber sua opinião, você que me lê, me escuta. Diz: o que pensa sobre?
Só sei, que brota beleza em tudo. O encantamento diário com a a vida não se apaga quando surgem contradições. Beleza, desafios, problemas e encantos correm em paralelo no dia a dia de cada pessoa. É o cotidiano, cheio de suas esquisitices.
Cleyton, n´alguma madruga entre 2004 ou 2005, no bairro Liberdade.