Por trás daquelas lentes

O homem é um ser social.

(Aristóteles)

Nos dias atuais, certos debates sobre assuntos polêmicos voltaram à tona: feminismo, homofobia, incesto, transexualidade, dentre outros, que nunca fizeram muito parte do meu universo familiar, nem escolar (pelo menos, os meus tempos de colégio e de adolescência foram bem diferentes). Não havia tanta liberdade como hoje para essa juventude. Não sei se por um lado é algo positivo ou se por outro é algo negativo. De duas coisas, eu sei: tudo é relativo e tudo também é discutível, conforme defendem alguns. O fato é que o mundo sempre tem de mudar. Não adianta vivermos de nostalgia, precisamos encarar o futuro.

Ainda estou na persistência por me desfazer das recordações que sempre me trazem o passado de volta. Às vezes, penso que não domino minha mente, porque esta adora me pregar uma peça e colocar-me de novo diante do que vivi. Em que consiste a estratégia? Não sei dizer ao certo. O que sei é que toda pessoa tem a sua história que vai sendo tecida aos poucos. Não há como fugir de cada fato, de cada gesto, de cada experiência que ajuda a constituir o sujeito enquanto ser social. Somos o que somos porque um outro nos reconhece como um indivíduo capaz de interagir, de inquirir, de pensar, de produzir. Em outras palavras, um ser composto de ações.

O problema de se viver em sociedade é que ninguém até o presente momento descobriu um remédio contra o (pré)conceito. É assim mesmo como eu escrevi. Tal palavra designa estados nos quais alguém é julgado por ser de um jeito e não de outro, ou por se vestir de um jeito e não de outro. Tudo, é claro, previamente, sem antes haver uma averiguação de tal juízo. Eu poderia enumerar aqui mil e um exemplos do cotidiano. Comecei a sofrer os efeitos desse vocábulo tão temido ainda na infância, e o que me remeteu a isso foram os óculos de grau que usei dos 07 aos 14 anos. Por eu ter tido dificuldades para enxergar em ambientes muito iluminados e para ler sem sentir enxaqueca, uma consulta ao oftalmologista fez-se obrigatória. Feitos os incipientes exames, o médico foi categórico:

- Lentes de 2 graus serão o bastante para corrigirmos a visão!

Prescreveu o modelo detalhadamente no receituário e entregou-o à minha mãe, que, naquele tempo, era a minha maior responsável. Astigmatismo e hipermetropia - foi o diagnóstico clínico. A correria para se levar a receita médica até a ótica e se providenciar as lentes foi desgastante e longa, dado que não foi tão fácil assim encontrar o modelo. Por fim, passei a sentir aquela armação recoberta por uma camada de acetato de celulose, a qual era mais confortável e, ao mesmo tempo, me deixava com a impressão de que uma parte do meu rosto, totalmente transformada, iria também transformar, dali em diante, a minha vida para sempre. De fato. Transformou. Só que, em parte, para pior.

Os tempos da minha infância foram outros. Ainda não se sabia a definição de “bullying”, que corresponde ao conjunto de agressões verbais, físicas ou psicológicas que objetivam humilhar a vítima e, em alguns casos, as consequências podem levá-la ao suicídio, a transtornos mentais e à depressão. Geralmente, são ações contínuas que têm característica de perseguição; e os ambientes sociais propiciam tal prática. Nos escolares, o “bullying” é típico. As lentes de grau, que eram sustentadas pelo meu nariz e pelas orelhas que serviam de apoio para as demais partes da estrutura da armação, representavam uma nova rotina sobre a qual eu não fazia a mínima ideia dos resultados. Eu era um ser de outro planeta para a maioria dos olhares que me fitavam indiscretamente e sempre com expressões de desdém na fisionomia. Às vezes, a linguagem do olhar e da face era substituída pela a da palavra, cujo efeito, normalmente, era a diminuição moral do indivíduo. As lentes eram a deixa para que ocasiões constrangedoras acontecessem intensamente.

- Diz aí, “quatro-olhos”! Ainda usando essas lentes?! Só você mesmo para ter isso!

E quando o desmerecimento ganha força:

- Ei, olha lá o “fundo-de-garraaaaafa”!

Em seguida, começaram a associar-me à figura de um débil mental. Segundo alguns, as lentes me davam essa aparência; o que para mim tal analogia estava longe de satisfizer a realidade. Nem lembro mais que reações se passavam exatamente na minha cabeça; só talvez o suficiente para uma reflexão sobre o que é a diferença. Se ser diferente é ser normal, duvido muito que as pessoas entendam que precisam dividir o que são ou que têm com os outros. Certa vez, li um psicólogo falando que boa parte do comportamento ansioso tem sua origem no simples fato de queremos ser o centro das atenções. Exatamente, leitor, “o centro das atenções”. Achamos que todos têm a obrigação de nos procurar para que realizemos todo tipo de tarefa. Isso leva, na maioria das vezes, aos já conhecidos transtornos de ansiedade e à famosa depressão. É interessante, segundo ele, que aprendamos a admitir que não temos facilidade em tudo, que temos as nossas limitações. Até certo ponto, semelhante justificativa faz todo o sentido. “Imagine se todos procurassem você para a execução de todo tipo de projeto: você não teria paz”, foi a colocação. Incrível! Nunca havia parado para pensar a esse respeito. Nisso, já se constitui a diferença. E por que não enxergar uma peculiaridade em cada um de nós com base nessa fala do especialista?

Durante aquele período da minha mocidade, eu ainda não conseguia pensar com tanta sabedoria e ver em mim um aspecto peculiar. Teria sido somente o fato de usar óculos? Os colegas de escola, de vez em quando, evitavam contato. Acho que a minha cara de débil mental ou nerd incomodava muito. Não sei por que está me vindo agora uma canção daquela época:

“Se as meninas do Leblon não olham mais pra mim

(Eu uso óculos)

E volta e meia eu entro no meu carro pela contramão

(Eu tô sem óculos)

Se eu tô alegre eu ponho e vejo tudo bem

Mas se eu tô triste, eu tiro os óculos

Eu não vejo ninguém.”

Sentia os movimentos do rosto limitados, bem como os exercícios físicos. A visão só melhorava ao colocar aquelas lentes, tão importantes para a minha saúde, mas, ao mesmo tempo, transmissoras de um caráter equivocado da minha pessoa. O que pesava era a noção de que eu era um gênio, como se gênios fossem um espécime de semideuses, intocáveis, divinos e não seres humanos passíveis de erros e de imperfeições. Justamente por serem seres humanos não diferem dos que não possuem um ou outro talento que não os destaca. Apenas possuem o “seu” talento, que deve ser respeitado e valorizado. Daí, possivelmente, tenha nascido parte do meu comportamento antissocial, o que me prejudicou durante a minha adolescência, porque falta de uma boa educação é que não foi:

“Por que você não olha pra mim (ô ô)

Me diz o que é que eu tenho de mal (ô ô)

Por que você não olha pra mim

Por trás dessa lente tem um cara legal”

Embaraços com os estudos, até que nem tanto; em relacionar-me com quem quer que seja, sim. Uma personalidade esquiva foi raiando por meio do reforço alheio, e eu a fui deixando controlar-me cada vez mais. Passei a evitar qualquer tipo de contato social por medo de as lentes possibilitarem mais algum conceito que não condissesse com o meu eu. Foram poucas as saídas de casa e poucos os divertimentos, além, é claro, do dinheiro, naqueles idos de 80 e 90, só dar para o essencial; e este resumia-se aos estudos, aos passeios públicos nas praias urbanas. Um bicho do mato tomou conta de mim, assustando-me. Eu não queria ser mal julgado. No entanto, as lentes me acompanhavam aonde quer que eu fosse, sempre me atraindo os maus olhares. Elas, provavelmente, repeliam os outros por me desenharem como um ser pedante, vaidoso, só porque gostava de estudar, ler, descobrir mundos. Não sabia que ser intelectual era pagar um preço alto. Pois é, eu paguei esse preço. Não por querer, mas por necessidade. Lá no fundo, a renúncia a certas coisas foi contrabalançada pela ânsia num futuro promissor. Eu continuei com a minha essência: ser feliz com o que podia ter e com o que podia ser. As lentes mascaravam um alguém que naquele instante precisou recolher-se em sua simplicidade e em sua dor para, em seguida, nascer de novo. O dom para atividades intelectuais nunca me fizeram perder a minha essência, muito menos a minha esperança em dias melhores para o meu problema oftálmico.

“Eu decidi dizer que eu nunca fui o tal?

Era mais fácil se eu tentasse fazer charme de intelectual

Se eu te disser, periga você não acreditar em mim

Eu não nasci de óculos

Eu não era assim não.”

O mais complicado foram os possíveis romances desistidos. Envergonhado com as lentes, escondi-me por trás delas, e a timidez ganhando forma ao lado da personalidade evitativa. Vislumbrava a exuberância e a beleza das colegas de escola com uma paixão que procurava sufocar, porque seguia as orientações dos meus genitores para que colocasse os estudos sempre em primeiro lugar. Os amores podiam esperar. Afinal, eu teria uma estrada enorme a percorrer pela frente, e tudo teria o seu momento. Mal imaginava eu que vivenciar bem cedo as frustrações dos primeiros amores talvez me amparasse com eficiência quanto às que viriam, fazendo-me amadurecer logo e preservando-me dos dissabores numa idade já avançada. Por um lado, eu me arrependo. Arrependo-me, inclusive, de ter sido muito correto e de ter deixado as lentes passarem essa imagem de mim mesmo. Eu podia, leitor, ter reagido. Ter me exposto mais, apesar das lentes. Elas eram apenas a minha projeção; bem diferente do que eu era:

“Por que você não olha pra mim (ô ô)

Por que você diz sempre que não (ô ô)

Por que você não olha pra mim

Por trás dessa lente também bate um coração.”

Já faz 24 anos que não sei mais o que é acordar tendo de colocar os óculos para ir trabalhar, estudar ou enxergar os objetos ao meu redor. Tanto que ao testar óculos de sol me incomoda excessivamente. Não gosto. Meus entes queridos dizem que é uma proteção para a retina, especialmente numa cidade como Natal, conhecida há décadas como a “Cidade do Sol”. Entretanto, eu costumo relutar e encarar a luz natural. Aliás, escrever com a assistência dela é bem mais natural do que sob a luz artificial, que geralmente esconde alguma coisa de nós. Eu também não gosto muito. O escritor João Cabral de Melo Neto, dizem, era assim: só escrevia seus poemas sob o efeito da luz natural, isto é, durante o dia. Então que até esse gesto meu e de João Cabral possa se encaixar nessa concepção. Ser natural, mesmo com toda a limitação física, emocional e psíquica, é comum e normal. Uma, porque é inevitável; a outra, porque pode estar dentro da lei, e esta é o limite de toda sociedade. Cabe a todos nós nos adaptarmos a cada situação, a cada pessoa. Ninguém ensina melhor que a convivência. Esta nos leva à tolerância, modifica, nos torna resistentes e até resilientes. Fica a dica!

Paulo Caldas Neto
Enviado por Paulo Caldas Neto em 15/09/2019
Reeditado em 15/09/2019
Código do texto: T6745892
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