CAPAZ!

Há gente que acredita conhecer o Rio Grande do Sul, e mesmo Porto Alegre, mas não é bem assim. As marcas de uma poderosa colonização italiana, alemã e portuguesa, mais espanhóis, libaneses, judeus, poloneses, negros e índios nos definiram de modo bastante singular, ainda mais ao lado de Argentina, Uruguai e Paraguai. As colônias italianas e alemãs eram e ainda são praticamente mundos à parte, ilhas europeias no início e que, depois, espalharam influência por todo território, conformando uma nova cultura, um retemperado espírito à Província de São Pedro, com seu dialeto e hábitos arraigados. Quando morei em Encantado, nos albores dos anos 50, as famílias ainda falavam dialeto entre seus membros. Nossa fronteira, em municípios como Itaqui, Alegrete, Uruguaiana, Livramento tinha o ritmo do gado solto no pasto. A referência turística e cultural mais relevante era Buenos Aires e não São Paulo ou Rio de Janeiro. Meu avô Pedro passou sua lua de mel em Buenos Aires, como eu próprio, aliás, também o fiz. Então, formou-se por estas bandas uma realidade típica e uma cultura diferente, nem melhor e nem pior, mas com outro sotaque. O espírito de conquista e defesa territoriais de nossos Maiores deve ter moldado a característica combativa do gaúcho, pronto para confrontos e disputas, mas com boa disposição de viver, cultivando a alegria e os valores familiares, assim como o desfrute constante em comunidade. Chimangos contra maragatos, Grêmio versus Colorado, PTB versus PSD, UDN, PDC e PL, PRP ou ARENA versus MDB e assim por diante. Pode impressionar quem não nos conhece mais a fundo, mas é coisa que se dilui no primeiro gole de bom vinho ou na fartura de um delicioso churrasco, que agrega e assegura intimidade. Não é fácil triunfar e bem viver no contexto das bipolarizações. Não é simples ser bem sucedido profissional e socialmente aqui no chão nativo, de cobranças e exigências, mas a grande maioria consegue e acaba encontrando seu canto. A Europa de além-mar abriu-se mais rapidamente, a daqui foi evoluindo com mais lentidão. Mas é no balanço da carroça que as abóboras se acomodam. Enfim, até o clima sulino é diferente: muito quente no verão e frio de lascar no inverno, geralmente. Ademais, há dias em que vivemos todas as estações. Tem de ser cascudo para aguentar o repuxo do dia a dia: contrastes, disputas e paixões, quase ninguém é morno. Capaz! Comparativamente a outros estados, é gente mais reservada, como o interiorano que conheci nos idos tempos. Afinal, os imigrantes e colonizadores estavam rasgando novos caminhos e enfrentando muitas adversidades para sobreviver. Havia cicatrizes relativamente recentes na alma de um povo terceiro-mundista, como a geração européia que atravessou a II Grande Guerra. Mas isto já mudou muito. A globalização vai equalizando os humanos, bom por um lado, nem tanto por outro. Eu conheci Paris com muitos mutilados de guerra e viúvas rabugentas. Um povo mais fechado que o nosso, mas convivi bem e jamais reclamei. Nossa população não é litorânea, o turismo não é muito intenso e a migração urbana foi volumosa e rápida. O Governo Central está em Brasília e somos o Estado mais meridional do país. No entanto, desde o ensino, cultura, ciência, saúde, tecnologia até o esporte – com seus problemas e circunstanciais atrasos – ainda constamos do cardápio nacional. Capaz que não.