UMA CANÇÃO AOS HUMILDES
UMA CANÇÃO AOS HUMILDES
*Rangel Alves da Costa
As pessoas humildes são pessoas. As pessoas humildes são iguais às demais pessoas. As pessoas humildes possuem um coração que pulsa, uma mente que pensa, um pensamento que situa sua realidade, um desejo que faz querer suprir suas necessidades, um sentimento que também faz amar, sofrer, alegrar, afligir.
As pessoas simples estão ali, acolá, pertinho de cada um, por todo lugar. Sua simplicidade está muito mais no distanciamento da fantasia urbana e do modismo transformador que qualquer outra coisa. Pessoas simples são de poucas palavras, e geralmente guardadas por receio de não serem ouvidas ou sequer consideradas pelos demais.
Pessoas simples vivem na simplicidade mesmo. Seu luxo é sua moradia, sua riqueza é apenas o que possui para sobrevivência, seu extravasamento é conseguir um tiquinho a mais disso ou daquilo, seu sonho maior é continuar sendo abençoado pela paz, pela concórdia e pelo sossego. São pessoas mais devotadas, mais religiosas, muito mais abnegadas na fé. São pessoas que sabem valorizar cada pedaço de pão, cada grão de feijão, cada pedaço de mortadela.
São pessoas cujo dinheiro conseguido já chega devidamente repartido para suprir as mais singelas necessidades. Pessoas humildes gostam de sentar em suas calçadas, debaixo dos pés de pau, em riba de tamboretes, elevando a memória ao passado e às saudades tantas. Tomam um dosinha ao pé do balcão de botequim, mordem e acendem seu cigarrinho de palha, proseiam pequenos causos, seguem adiante sabendo aonde vão.
Pessoas humildes fazem assim: são fiéis amigas dos amigos, respeitam que lhes respeitam, e não são de guardar mágoas por coisas pequenas. O luxo de sua casa está em quatro paredes ou pouco mais, de poucas dependências, com poucos móveis e poucas panelas, mas de fartura no acolhimento. Vivem em barracos, casebres, casas de barro e cipó, “palacetes” de alvenaria, em moradias até com portão e janela.
Vestido de chita, roupa grossa, pano de feira, vestimenta de pouco custo e que dê pra ser usada por longo tempo e até se rasgar. E mesmo rasgada continua sendo usada. Chinelo de pá, roló, sandália de couro cru, “aprecata” matuta, um trançado entre os pés. Caminha-se de todo jeito, calça-se do mesmo jeito, dizem. O luxo refinado de uma colônia barata, uma Alfazema Suíssa, uma lavanda qualquer.
Um pequeno espelho na parede de casa que é pra se pentear ou um maior para saber se a roupa ficou ajustada. Mulheres gostam de fazer muito isso. Que luxo ter um radinho de pilha para ouvir canções sertanejas ao entardecer: “Com as bênçãos de Deus, está no ar o programa Sertão, Viola e Amor. Que Deus abençoe o garotinho Zé Maria e dê a saúde ao garotinho Erivan Mandú. E agora, de minha autoria, vamos ouvir Garça Branca da Serra, na voz de Dino Franco e Mouraí...”.
Era uma festa aos corações e ouvidos sertanejos naquelas pessoas simples, humildes, da terra como a bela flor de mandacaru. Assim são as pessoas humildes, simples, tantas vezes empobrecidas ou outras vezes apenas deixadas ao esquecimento pelos citadinos ou que se acham viventes de outro mundo. Pessoas simples como João, como Maria, Eufrosina, Terêncio, Justino, Creuzina, Bastiana, Titoco, Beraldo, Lurdinha, Josefa, Arenildo, Joquinha, Delourdes...
Pessoas simples e humildes como aqueles viventes nas distâncias da cidade, nos beirais de estrada ou mesmo no meio do mato. Pessoas que levantam antes de o galo cantar e já se dão por dia completo assim que a lua vem beijar suas mãos. Gostam de jogar milho às galinhas que ciscam na malhada, gostam de sentar em tamboretes ao entardecer para adivinhar os que as nuvens vão trazer nos dias seguintes. São mateiros, roceiros, lenhadores, caçadores, vaqueiros, lavradores, pequenos agricultores, produtores da própria subsistência. São fateiras, lavadeiras, domésticas, do lar, doceiras, feirantes, catadoras de sonhos, semeadoras de esperanças.
Ora, mas nas casas simples de pessoas humildes não pode faltar as imagens santas, os tantos rosários e os terços de fé. As fitas de Juazeiro enfeitam as molduras dos quadros dos santos. Acima de Deus ninguém, mas Padre Cícero e Frei Damião são também devotados de alma e coração. Os dois santos nordestinos estão por todo lugar, desde a banqueta da sala ao oratório de canto de quarto. E de vez em quando, pelos lados dos quintais, enquanto as senhoras batem roupas, enxaguam e estendem panos em varais, as vozes se elevam em melodias:
“Da flor do sertão nasceu este viver que não é mais meu. O que tenho a Deus entreguei, o que levo comigo pela graça alcancei. Minha flor não murcha nem morre, no jardim da vida o meu Deus me socorre...”. Pessoas existem que são assim, que vivem assim, que podem ser encontradas por todo lugar. Nos interiores e sertões adentro, a feição de um povo que ainda não foi transformada pela feroz modernidade. E por isso mesmo, por continuar existindo quase apenas em si mesmo, sempre será possível encontrar em cada um a palavra boa, a sabedoria, a lição de vida.
Escritor
blograngel-sertao.blogspot.com