Quem cochila sai da fila
Havia se passado dois dias, já era domingo, mas aquilo, aquilo ainda não lhe saíra da cabeça. Ele sabia que não tivera culpa. Não cometera nenhum crime, portanto, não merecia nenhum castigo. Porém, assim como Raskólnikov, aquilo estava lhe perseguindo nos pensamentos, não importando por onde estivesse ou o que fizesse. Não que o seu aquilo, fosse o mesmo aquilo de Raskólnikov. Ele realmente não havia cometido crime algum. Entretanto, sentia-se angustiado, como que responsável por algo que não estivera no seu controle. Um absurdo, ele sabia, mas era assim mesmo que se sentia, atormentado. Talvez, se realmente não tivesse descido um ponto depois daquele que pretendeu ao puxar o cordão da campainha, teria chego um pouco antes, teria dado tempo. Mas aconteceu de o ônibus não parar, e sabe-se lá o que se passava nos pensamentos do motorista naquele momento, para tê-lo distraído ao ponto de não ter escutado o som da bendita campainha, ding, dim, plim, trim!
O certo foi que ele foi obrigado, muito a contragosto, a descer no ponto da frente, a uns três minutos de caminhada a pé, até que chegasse ao seu pretendido destino. O que à primeira vista parece pouco, mas nesse meio tempo ele bem poderia ter conseguido aquilo, bem poderia ter chego em tempo de.... Até quis gritar para o motorista que ia descer, mas algo dentro de si o bloqueou na hora h e ele engoliu o grito, simplesmente esperou sem reclamar. Desceu, assim, sem dizer um Ai ao motorista. Ah, se naquele momento ele soubesse!
Por outro lado, aquela não havia sido a primeira vez, algo parecido já havia lhe acontecido antes. Aliás, no momento a coisa toda lhe veio como um Dejá vu. Outra vez, por questão de minutos, perdera a oportunidade. Aquela mesmíssima oportunidade. (Eloi, eloi, lamá sabactani?!). Quis até explicar sua infelicidade, seu azar para a mocinha, mas pela cara que ela fez, decerto não havia entendido sua frustração, aquele seu desabafo repentino. Na verdade, ela debochou um pouco do desespero dele. Pode ser que ele tenha se explicar mal, não soubera se fazer entender. Se ela soubesse o quanto aquele tipo de coisa martela na cabeça do sujeito depois, não teria chacoteado da falta de sorte dele, ao menos, não daquele jeito tão cretino.
E se ele realmente tivesse gritado para o motorista que ia descer, “vai descer!”, teria chego primeiro e conseguido?
O fato é que quando finalmente desceu do ônibus e começou a caminhar, ele ainda não sabia que por um pouco perderia aquela chance. Não imaginava que chegaria tarde demais, (e como é que imaginária?). Se imaginasse, teria caminhado mais rápido, corrido. “Fora tudo culpa daquele motorista. Aquela era hora de se estar pensando na morte da bezerra, porra!”, esbravejou. “Ou será que ele simplesmente estava com fome e por esse motivo não prestou atenção na campainha? A fome de fato tem dessas, distraí a pessoa, faz perder a concentração...”
...sim, teria corrido, ou melhor, teria gritado a plenos pulmões: “Oh motoristaaaaaa, vai descer, a campainha foi puxada, meu!”. Como se arrependia por não ter berrado, por ter engolido o grito. Mas, como ele... como ele suspeitaria que... Como!... E se não bastasse, como desgraça pouca é besteira, ainda por cima teve que aguentar aquela mocinha tripudiando de seu infortúnio. “Ah, faço o favor! Se fosse com ela... se fosse... se fosse ela que tivesse perdido aquilo, aquela chance única, por conta de motorista que... sabe-se lá Deus por qual razão, não ouvira uma campainha tocar!”
E assim continuou a lamentar-se dias após dias, pois, de fato, essas coisas ficam martelando na cabeça da pessoa durante muito tempo. Esse, “e se eu”, pode enlouquecer o sujeito. Mas agora (que fique só entre nós), será mesmo que ele conseguiria se não fosse o ônibus ter parado somente no ponto da frente? Será que ele realmente teria chego antes, teria dado tempo mesmo?