MEMÓRIAS ESTUDANTIS

Após a renúncia de Jânio Quadros - já com o Vice-Presidente eleito, João Goulart, exercendo a presidência do país - passei a integrar, no ano de 1963, o escalão avançado do mundo colegial que se reunia no Colégio Estadual Júlio de Castilhos. Era um belo e moderno prédio público, que sediava o que havia de melhor em matéria de ensino no Rio Grande do Sul, para onde eu ia regularmente de bonde, às vezes a pé, pois já morava na Avenida Senador Salgado Filho, com os pais e quatro irmãos. Egresso do Ginásio Anchieta, ainda guardava alguns vínculos ideológicos com o movimento cristão de esquerda (AP). Não muitos, porque o rigoroso ensino jesuíta me empurrara para as bandas ousadas do ateísmo. A natureza laica e livre daquele novo centro de cultura e convívio fascinou-me. Era tudo o que precisava para tentar encontrar a minha identidade no florescer de meus 15 ou 16 anos: tempos de afirmação.

Fui um Juliano por opção, já que resolvi sozinho, sem conhecimento da família, prestar exame seletivo para ingressar em seus quadros, em fins de 1962. Com um pai conservador, pouco flexível, politicamente militante no interior do Estado - especialmente em Encantado, onde a família construiu-se por 13 anos, era preciso romper amarras e rasgar caminhos para um mundo novo que se pressentia. Não foi muito difícil para o Partido Comunista Brasileiro da Base do Julinho vir a cooptar-me. Luís Carlos Echeverria Piva, desde lá um grande amigo, foi escalado para tanto por Trajano Ricardo Monteiro Ribeiro, Marcão (Marcos Faermann), Taba (Antônio Tabajara de Araújo), Isaac Ajnhorn, Ubirajara Loureiro, Jefferson Barros, Cláudio Treiguer, Vítor Marc Rosário, Fabinho e Luís Paulo - que morava “nos píncaros da Glória”, como costumava dizer. Assim, comecei a fazer política como gente grande, sempre cheio de tarefas e missões “de grande relevância partidária”. Nos anos seguintes, 1964 e 1965, os compromissos agigantaram-se em função do Movimento Militar de 31 de março de 1964, que derrubou o Governo de Jango. Em substituição a Isaquinho, assumi, um tanto a contragosto, a Secretaria-Geral da Base do PCB do Julinho e tive de desempenhar alguns duros encargos. E o pior é que a gente acreditava na grandeza do mister a cumprir. Por esse tempo, também fui Subsecretário de Assuntos Nacionais do Grêmio Estudantil Júlio de Castilhos e acho que, depois, Secretário, tendo realizado a exposição fotográfica “Consciência e Realidade Nacional”, bastante apreciada pela turma (e quem mais poderia apreciá-la?). Acho que exerci essas tarefas tanto na Gestão Telmo Borba Magadan quanto na Gestão Carlos Gianotti, mas não tenho certeza. Afinal, hoje, não faz a menor diferença.

Em 1965, em composição com a chamada Esquerda Independente, fui eleito Vice-Presidente da Assembléia-Geral do Grêmio Estudantil. O Presidente era Nelson Soares de Oliveira, Nelsão, reeleito - um dos seis ou sete membros da “poderosa facção política” Esquerda Independente, que caberia numa Kombi. Grande negócio fizera o Partido Comunista com tal acordo! Nelsão ficou pouco tempo no exercício da presidência, parece que tinha de dedicar-se aos estudos para o vestibular, e a bomba acabou em minhas mãos, que presidi a célebre “Assembléia da pauleira”, onde até o Diretor de Turno, Plácido Steffen, foi agredido ao tentar apaziguar os contendores. Claro, houve sindicância, ameaça de expulsão, mas o Diretor Humberto Gessinger, sucessor de Airton Santos Vargas, e o Professor Plácido, souberam contornar o incidente.

Além dessa área “legal” de atuação política, agíamos, muitos de nós, numa espécie de clandestinidade, cumprindo com zelo e entusiasmo cívico as tarefas do Partidão. Nossa célula sempre foi bem ativa, tanto na “práxis”, como gostávamos de dizer, quanto no plano teórico, com incansáveis estudos e debates sobre o pensamento marxista-leninista. Lembro que nos reuníamos em tal ou qual “aparelho” (sempre na casa de um colega cujos pais jamais sonharam com as múltiplas finalidades de seu lar) e até “aulas” de marxismo ali eram ministradas.

Como já escrevi alhures, os textos literários dos “volantes” e “panfletos” de instrução que recebíamos eram engraçadíssimos, para dizer o mínimo. Geralmente iniciavam assim: “Camaradas, nesta hora grave da nacionalidade, sobre os ombros dos comunistas pesam grandes responsabilidades...” E por aí seguia o discurso, até o detalhe minucioso das dicas de sabotagem, como, por exemplo, entupir privadas de prédios públicos, queimar lâmpadas e outras maluquices.

Bem, é conveniente, aqui, explicar que o Partido Comunista Brasileiro não era uma grei partidária comum, como as agremiações que hoje conhecemos. Não só era clandestina, como a organização mais visada pelo regime militar. Mas, a bem da verdade, era um movimento até “conservador”, burocrático, se comparado à linha maoista do PC do B – uma dissidência mais radical, de inspiração chinesa. Nem precisaria, evocar, neste passo, Joseph Stalin, o ex-seminarista que deu forma e maior expressão ao PC, a partir da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas, notadamente após a vitória na Segunda Guerra Mundial. Havia também outras organizações e movimentos de esquerda exacerbados, que se espraiaram mais tarde na luta armada contra tudo e contra todos. É de se perguntar, enfim, como um jovem pequeno-burguês daquela provinciana e pacata Porto Alegre acabou por envolver-se com o Partido Comunista, se é que se pode considerar aquela nossa atividade como tipicamente partidária ou de grande alcance subversivo. Há várias razões, além das peculiaridades político-culturais da época: uma formação jesuítica opressora, uma família conservadora, com chefe autoritário e de opiniões dogmáticas, e, finalmente, as convicções pessoais forjadas no universo estudantil e literário dos anos 60. Anos rebeldes. É preciso esclarecer que a nossa unidade de base não se articulava freqüentemente com as superiores instâncias partidárias. Éramos “comunistas” livres, num território livre; muito pouco “orgânicos”. Mais tarde é que tivemos algumas missões dirigidas, “oficiais”, de maior impacto. Mas nunca se cometeu nada de grave. De qualquer modo, diferentemente das avaliações e registros da comunidade de informações do regime, não éramos ativistas perigosos a serviço de Moscou. Também não fomos “inocentes úteis” a mando dos maquiavélicos cérebros da esquerda internacional – massa de manobra - como apontava meu pai. “Úteis”, possivelmente tenhamos sido no processo de retomada da liberdade e da afirmação do pluralismo; agora, “inocentes” o sistema jamais nos considerou e, sempre que pôde, deixou isso muito claro. Sofremos várias restrições e constrangimentos, mas soubemos absorver tudo isto como contrapartida da luta, um tributo à rebeldia - inclusive a pauleira algumas vezes sofrida da Polícia de Choque. Faz parte. De qualquer modo, nossa atuação era limitada, em meio-turno, quem sabe até pueril. Ao menos no que me toca.

Certa feita, Piva recebeu a oferta de uma bolsa de estudos para a Universidade Patrick Lumumba de Moscou. Fomos falar com seus pais, um escândalo e muita xingação. Daí me transferiu o grande prêmio. Como éramos dependentes e menores, fomos a minha casa para tentar convencer os meus. Novo escândalo e xingações ainda maiores. No final, a bolsa acabou sendo usufruída pelo Bira, maior de idade e disposto a tudo.

Pergunto-me, hoje, como pudemos ter sido bons alunos, e o fomos, praticamente todos. Tirei notas bem boas no curso clássico e, finalmente, uma excelente colocação, entre os primeiros, no vestibular de Direito da URGS (que ainda não era federal). Assim também meus colegas de aula e militância, a grande maioria bem-sucedida por aí, hoje bem longe do Partidão e do materialismo dialético e histórico.

Talvez seja lícito concluir que vivíamos a era da ingenuidade, ou da pureza, embriagados de idealismo, sempre dispostos a debater idéias, a requerer “uma questão-de-ordem”, a contestar verdades estabelecidas. Foi um momento especial, de transição histórica e enormes transformações. Passou. Cumprimos nosso papel. Ninguém foi herói ou vilão. Também nos divertimos muito. Além de compor um jogral que se apresentou - não me recordo a que título - no Cine-Teatro Imperial da Rua da Praia; além dos bailes da Reitoria, das estripulias no Bar do Julinho, das rodas de viola e das incansáveis noitadas no Encouraçado Botequim ou barezinhos de periferia atrás de chope a cem pilas, como no Renânia, muitas outras atividades lúdicas entremearam a dureza das nossas pugnas. As noites em claro na Rua da Praia, defronte ao Matheus, devorando um sanduíche de pernil de porco com mostarda, considero parte da nossa jornada cívico-democrática. Ali, reunia-se a juventude porto-alegrense, colegiais, universitários e vagabundos em geral, para resolver os problemas do mundo e, principalmente, os próprios. Muitas vezes acabávamos a noitada no Restaurante Treviso, no Mercado Público, amenizando a borracheira com uma canja de galinha com ovo e palmito, de levantar defunto. Admirávamos o Doutor Leonel Brizola, Luís Carlos Prestes, Che Guevara, Fidel e Jean-Paul Sartre. No meu primeiro livro de crônicas de 1998, dedico uma passagem à turma do curso clássico, que considerei “um grupo heterogêneo e inquieto, misto de barra-pesada de periferia e fina-flor dos melhores salões”, em que havia bailarinos, artistas, políticos, politiqueiros, radialistas, agitadores, “estudantes profissionais”, estudiosos e até gente bem normal. Tivemos grandes mestres, dentre os quais Aldo Obino, Professor de Filosofia e consagrado crítico de arte, que dizia que a sociedade dividia-se em trabalhadores, trabalhistas e trabalhosos. Certa feita, Obino anunciou solenemente em classe: “Senhores, mataram a Metafísica! Mataram a Metafísica!”. Piva não se conteve e indagou-lhe: “Quem matou a Metafísica, Mestre?” Pressentindo a maldade, após alguns instantes de vacilação, arremeteu-se contra o colega: “Foi tua mãe, desgraçado! Tua mãe!”.

Claro, sentimos saudade, mas também é preciso lembrar que houve maus momentos, muita dureza econômica, desencontros familiares, amores extraviados, repressão de toda ordem, sonhos que se dissiparam no confronto árido com a realidade da vida, que seguiu seu rumo nem sempre favorável a todos. O que importa mesmo é que, de um jeito ou de outro, cada um de nós, Julianos por convicção, ajudou a construir o mundo de hoje. Com seus erros e acertos, da esquerda ou da direita, não importa. Esta realidade dá-nos o sentimento e a consciência de uma solidariedade muito forte, de uma cumplicidade poderosa, que sempre irá emocionar os nossos reencontros pela vida.