PELA NUDEZ DA PALAVRA

PELA NUDEZ DA PALAVRA

*Rangel Alves da Costa

Não, não me venha com floreios nem academicismos. Não me venha com léxicos, sufixos, prefixos, consonâncias, hipérboles, sinonímias ou quaisquer hipocrisias gramaticais. Teça a teia da gramática quem quiser, mas eu prefiro a nudez da palavra e o seu cheiro de terra. Que os verbos e as conjugações ficam num canto. Preciso, isto sim, daquele dizer que desponta na cuia ou da boca da moringa.

O pau torto da palavra é madeira de lei na sabedoria. O sábio não precisa escrever com letras douradas ou expressar seu conhecimento entre os ramos dourados da latinidade gramatical. Como dito, chega de floreios e adornos, chega de redondilhas ou alinhavamentos para dizer o simples, o inteligível, o que realmente possa ser entendido. Besteira besta usar anela e gravata na boca. Besteira besta pensar que o sentido da palavra vem acompanhado da formação.

A boca até entorta na palavra escolhida, forjada, forçada no egoísmo verbal. Ao invés de um leve sopro, de uma brisa, de um aroma singelo, muita boca prefere se abrir em tempestade. Será que é para assustar ou para amedrontar o ouvinte? Pra que dizer “Você Excelência é um digníssimo canalha!” ou “Vossa Senhoria possui a sabença suficiente que não passa de um verme asqueroso”. Melhor dizer: “Um fi da gota é o que você é!”. Ou apenas: “Seu fi da égua imprestave!”. Tá entendido?

Na verdade, a palavra clama por entendimento, e não por incompreensão. Ou pede apenas que seja ela mesma, e não um significado mirabolante. E o que é mesmo a palavra senão o encontro do dito com o significado? Por que ósculo se beijo ecoa muito mais bonito? Por que arma perfurocortante se faca peixeira faz a mesma sangria? Por isso que prefiro outra palavra.

Prefiro a palavra matuta. Uma escrita que berre, que cacareje, que relinche alto. Prefiro essa palavra suada, encourada, de gibão e roló. Uma escrita que tenha mato e espinho, que tenha chão e mandacaru. Prefiro não ter nome de poeta ou de escritor. Apenas sertanejo. O que sempre sou.

Prefiro a palavra troncha, mal pronunciada, até errada. Uma escrita com flor de cacto e também com o queimor da urtiga e do cansanção. Prefiro a palavra no calor do sol, na dureza do barro do fundo do tanque, na desvalia de tudo. Prefiro não ser visto como poeta ou escritor. Apenas das distâncias matutas. O que sempre sou.

Prefiro a palavra pouca, miúda, quase sem falar. Uma escrita humilde, de roupa rasgada, de chapéu na cabeça e bolso vazio. Prefiro a palavra sem luxo, sem arrogância, sem petulância, sem anel dourado. Uma palavra que venha como sopro de vento e consigo traga o cheiro bom da natureza. Prefiro escrever para ser compreendido ou mesmo apenas imaginado pelo meu irmão sertanejo.

Prefiro a palavra cheirando a bolo de feira, a mungunzá, arroz-doce e doce de leite. Uma escrita doce sem ser enjoativa, temperada na panela de barro e não no vasilhame de cozinhas desconhecidas. Uma palavra que seja colocada no meio do pão, que seja tomada com café batido em pilão, que desça na garganta como um amém. Prefiro a palavra de mesa tosca e de tamborete, de rede armada e de lua maior. Um dizer bem sertanejo.

Prefiro a palavra montada em cavalo, correndo na mataria, sacolejada no lombo do animal sobre a estrada de chão. Uma escrita povoada de bicho do mato, de ninho de passarinho, de sombreado de arvoredo, de fonte d’água escondida. Prefiro a palavra oca, seca, vazia como o fundo do poço. Uma palavra que não precise de rebuscamento para ser entendida nem escrita com pontos e vírgulas para se mostrar importante. A palavra sertaneja, apenas.

Prefiro a palavra da mocinha tímida, do velho vaqueiro, da rezadeira, do curador, da benzedeira. Uma escrita milagrosa como a folha do mato, a raiz de pau e a reza mais forte. Prefiro a fé na escrita à descrença do palavreado bonito, quero mais a letra caída como gota d’água num sertão esturricado ao caderno aberto para o que jamais será lido. Uma escrita tão terna e cativante que seja como um dengo, que seja como um cafuné. Uma palavra que vingue do fundo do pote e seja bebida com a maior sede do mundo.

Prefiro a palavra fugida da tocaia e da emboscada e renascida na força de sua própria crença. Uma escrita nascida como benzimento, como prece e oração daquele que sabe o valor de um povo. Prefiro carregar minha dita no fundo do embornal e do aió, derreada na cangalha e no cantil, de modo que esteja ao meu alcance toda vez que eu deseje mostrar ao mundo como é o viver sertanejo. Em cada palavra minha não estará além do que a fundura da terra e a superfície do espinho pontudo.

Prefiro escrever vosmicê, oxente, vixe, cumé, adispois, munto, quarque, quartinha, estambo, prumode, perfessor, arriba, fi da peste, cabrunco, lambisgóia, mio e mió. Prefiro uma palavra assim. Escrita desconhecida da cidade grande. Uma palavra que não seja nada. Mas que seja tudo pela feição descrita da terra sertão.

Escritor

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