BOA ROMARIA FAZ QUEM EM CASA FICA EM PAZ
Viajar é quase a regra, o habitual ou o sonho de consumo de grande parte das pessoas, diversamente do meu tempo, em que viajar para outros Estados e para fora do país era muito menos frequente, raras vezes uma aspiração mais poderosa e dificilmente uma realidade. Agora, tudo é muito fácil, diria até banal, com promoções, milhas, cartões de crédito e parcelamentos. Já foi aventura radical. Por isto, o título desta crônica, que traduz o pensamento de gente mais antiga. Viajar é muito bom, abre janelas e diverte. Mas quero ponderar que os mais velhos tinham uma boa dose de razão, na medida em que valorizavam a vida real, com sua rotina e a importância do convívio no lar ou no seio da comunidade, sem o frenesi de novas experiências e sensações a toda hora, nos mais estranhos e longínquos recantos. Conheci muita gente de qualidade e bom nível social que praticamente não conhecia Porto Alegre e que não arredava pé de seus rincões, apenas para tratamento de algum problema mais sério de saúde. Tem vivente que não sai do seu pago nem por justa causa: talvez excesso de preguiça e conveniência, mas é comum. Alguns viajam através da leitura e basta, sobretudo hoje com a expansão das emissoras de televisão e da internet. Para muita gente, viajar é passar alguns dias de verão na praia, fazer uma visita assaz eventual a Gramado, quem sabe até Rio de Janeiro, Buenos Aires, Montevidéu. A cada lustro ou decênio. Comparecem eventualmente a um casamento, festa de formatura ou aniversário em outra Capital, mas é raro: assunto que rende muitos anos de “causos”, recordações ou defesa para evitar novos desafios e demandas. Pois é, conforme reza o adágio “Boa romaria faz quem em casa fica em paz” e fim de papo. Viajei bastante a trabalho até 50 e poucos anos, depois, passei a esquivar-me, inclusive para viagens para fora do Estado (congressos ou seminários custeados pela organização em que trabalhava). Os que têm pânico de avião nem precisam de maiores justificativas, não é meu caso, que vou na boa em qualquer meio. Afinal, pensando bem, a razão maior de possuir uma casa confortável, acolhedora, com tudo a gosto e à mão, parece-me que seja nela ficar e desfrutar, com parentes próximos, com seus bichinhos e bons amigos à volta. Quando a gente viaja é de férias, sem escravidão litúrgica: odeio gincanas, suporto, no limite, o desconforto dos aviões, mas nossa moeda é atualmente um lixo mundo afora. Fui criado nesta cultura aquerenciada, mas botei seguidamente o pé na estrada. Hoje, a febre cedeu consideravelmente. Seja como for, não se deve negar valor ao modo antigo de pensar, pois foi assim que foram forjados os esteios da vida que desfrutamos. Finalmente, que cada uma faça a viagem que mais lhe fascina, é bacana, mas que se prestigie a vontade dos que cultivam seu habitat. É preconceito achar que estão perdendo muito: às vezes sim, outras nem tanto. Também viaja bem aquele que se dedica a percorrer e a descobrir seu mundo interior. Já havia escrito este texto antes da pandemia e da crise econômica. É claro que, no período, nunca deixei de frequentar Gramado e Xangri-lá, no verão. Mas só isto, por ora. Ainda planejo outras andanças mais ousadas, com muita calma, até pelo fato de que persistem barreiras. Tudo o que antes registrei acerca da boa vida arraigada, cresceu enormemente de relevância agora em matéria de segurança, efetivo proveito e economia. Respeito os inquietos como já fui, os andarilhos e aqueles que estão à procura de algo mais. Cada um no seu quadrado, com suas idiossincrasias. Existem, aliás, os que necessitam deslocar-se. Eu já não necessito tanto, prefiro uma boa mesa, uma convivência afetiva, um vinho de qualidade, um bom livro ou filme, sem precisar gastar "os tubos". E sempre um bom cigarrinho, que ninguém é de ferro.