Demósthenes Ferreira Lins, o Escritor, Filósofo e Poeta fonteboense

Esta semana retornei a este blog com a intenção de publicar algumas “bobas coisas” que escrevi durante as pretéritas madrugadas outonais que ousaram desfolhar minhas lembranças...

Hoje o “Diário de Minhas Memórias” está centrado na figura cintilante de Tio Demósthenes, não o politico, mas o intelectual, articulista e escritor festejado que costumava publicar semanalmente seus textos filosóficos e poéticos nos diversos matinais de Manaus, tais como o centenário JORNAL DO COMÉRCIO, A CRÍTICA, e o saudoso A NOTÍCIA.

É sabido que tio Demósthenes manteve durante as décadas de 70, 80 e inicio dos anos 90, uma produção constante e rica de repertórios.

A partir do recorte temporal alicerçado pelos anos de 1989, lembro que tio Demósthenes, após deixar a prefeitura de Fonte Boa passou a utilizar uma sala cedida no antigo prédio da Federação da Agricultura e Pecuária do Estado do Amazonas - FAEA, onde seu irmão Eurípedes, era presidente. Lá tinha a sua disposição o espaço e ambiente apropriado para a promoção de seus estudos, bem como para a criação robusta e zelosa de seus florilégios textuais.

Eu, que vez outra acompanhava meu saudoso pai (Maneco) em suas visitas pela FAEA, recordo nitidamente do querido “bafoso” sempre bem vestido e perfumado. Em seu escritório, ao lado de sua máquina de datilografar, havia um pequeno armário onde guardava seus arquivos pessoais.

As lembranças amornadas igualmente me trazem a tona aquele ambiente silencioso, onde os muitos livros da estante pouco repousavam. A enorme quantidade de textos datilografados e outros rascunhos feito a mãos, sempre bem organizados e separados por temas, também se destacam em minhas reminiscências. Entre alguns originais batidos na máquina de escrever havia uma pasta com farto material já compilado aguardando o momento oportuno para dar vida a seu primeiro livro, o que infelizmente não ocorreu.

Acontece que tio Demósthenes, inesperadamente, acabou por atravessar prematuramente o grande rio da vida. Partiu antes de concretizar o desejo íntimo de ver publicado “seu livro”. Talvez “seus livros”, vez que havia material suficiente para outras publicações voltadas aos gêneros da Crônica e da poesia.

Após sua morte, ocorrida em 1992, toda essa produção literária ficou sob a custódia familiar, que aos poucos foi se dissipando pelos empréstimos a "amigos" e familiares que “não tiveram o bom senso de devolvê-las”, de tal feita que com o passar do tempo tudo se perdeu a ponto de não sobrar um simples rascunho, cópia, ou qualquer outro manuscrito que pudesse revelar a memoria literária desse celebrado escritor.

Certo dia conversando com um primo querido - filho do tio Demósthenes, a respeito da minuta de um projeto, cujo objetivo visava resgatar a memoria literária de seu genitor, eis que me veio a seguinte informação: "Meu primo, talvez você possa encontrar na Biblioteca Pública Estadual alguns acervos de jornais, dos anos 70 e 80 onde certamente haverá algumas das crônicas publicadas pelo papai".

A partir dai iniciei minuciosa pesquisa em busca do material mencionado. Não foi fácil, nem rápido. Foram centenas de horas empoeiradas na solidão quase que infinita dos porões úmidos que norteiam os Arquivos Públicos e as salas frias das Bibliotecas locais. Ousei garimpar como quem busca o ouro em minas profundas. Venci! Ao final pude encontrar o dito tesouro revestido sob a efigie rara das crônicas escrita por tio Demósthenes, publicadas em jornais diversos...

Dois anos se passaram desde então. Do inicio das pesquisas até a análise e coleta do ultimo material disponível, consegui agrupar somente 27 crônicas. Pouco diante de tanto material perdido. Mas valeu a penas... Sim, "tudo vale a pena se a alma não é pequena", já nos ensinava o poeta lusitano Fernando Pessoa. Entretanto, uma angustia insistia tomar conta de mim por não ter, sequer encontrado, pelo menos um dos poemas de tio Demósthenes, poemas perdidos no tempo, cujo título jamais se perdeu em minhas lembranças: Epopeia Cabocla e Terra Caída.

Assim segui... Mas o sentimento até aquele momento não chancelava o espírito do dever cumprido. Parecia que um sino ousava insistentemente falar-me aos ouvidos, “faltam os poemas, procura os poemas, Eylan...”.

Apesar dessa insanidade temporária, dei inicio a compilação das crônicas por data de publicação. Depois redigitei os textos, terminei, fiz a revisão ortográfica, introduzi notas explicativas, e finalizei a primeira etapa desse processo com a diagramação da boneca do livro. Como o trabalho foi organizado por mim, intitulei de "Demósthenes Ferreira Lins - Crônicas Reunidas".

Apesar do trabalho pronto, minha intuição me levou a novas pesquisas. Nada muito comprometido, pois o trabalho já estava concluído. Eis que um dia me deparo com a hemeroteca digital do Jornal do Comércio (atualizada). E de repente, lá, bem a minha frente um cronista, correspondente de Itacoatiara apresentava ao seu público leitor, em momentos distintos, a poesias do seu "amigo Demósthenes Lins". Neste exato momento fiquei em êxtase. Os poemas encontrados eram justamente aqueles que ainda menino, lá em Fonte Boa, ouvira tanto falar.

Obstante ter encontrado apenas dois poemas - porém, duas joias raras - os mesmo acabaram por compor o trabalho em homenagem a memoria de tio Demósthenes, cujo titulo agora, definitivamente, tomou o nome de "Demósthenes Ferreira Lins - Crônicas e Poesia Reunidas".

Em janeiro pretérito, em Fonte Boa, tive a grata oportunidade de apresentar a alguns primos (filhos do tio Demósthenes) o trabalho acima descrito. Mostraram-se interessados. De fato o mais difícil já foi feito. Acredito que o custo financeiro da obra é irrisório se levamos em consideração o hercúleo e florido trabalho de resgatar a memorias de nossos familiares. Ficamos de ver a possibilidade de fazer (pagar) uma edição e lança-la em Fonte Boa. Quem sabe um dia desses, quem sabe...

Enquanto isso não ocorre, resolvi publicar aqui, de vez em quando, suas Crônicas. De igual feita vou deixar abaixo os dois ditos poemas publicados no Jornal do Comércio, em 1977, com as devidas notas do colunista Roberval Vieira, para degustação do leitor...

Vejamos:

CABOCLO

- esse herói da Amazônia -

“Recebemos de Demósthenes Ferreira Lins - tuxaua de Fonte Boa – um de seus inúmeros poemas e que versa sobre a vida do nosso interior. Trata-se de “Epopeia Cabocla”, que, quer na densa mata ou na ribanceira entre as serpentes ou onças traiçoeiras, vive o caboclo.

O poema de Demósthenes Ferreira Lins mostra a realidade do caboclo na sua forma mais antiga e primitiva e cheia de sonhos e poemas.

Para os milhares de aficionados da literatura cabocla ai mais um trabalho deste nosso assíduo leitor e representante legítimo dos nossos irmãos do alto Solimões.”

EPOPÉIA CABOCLA

Demósthenes Ferreira Lins

Quer na densa mata ou na ribeira

Entre serpes e onças traiçoeiras

Vive o caboclo – esse herói amazônida

A construir num labor contínuo

A grandeza da terra brasileira...

Se nos confins da selva onde a desolação domina

E onde as doenças mortíferas andam a solta

Levadas pelos infectos mosquitos das águas paradas

Ou nos lagos e imensos igapós distantes

O bravo caboclo enfrenta a onça,

Luta com o jacaré.

E quando no seu trabalho

A noite já se faz total a seu redor

Ele vê de quando em vez

A Natureza toda estremecer

Sob o impacto de terríveis esturros,

De gritos lancinantes

Que parece infindáveis gemidos de monstruosas feras...

É a linguagem grotesca dos animais notívagos

Vibrando em infernais algazarras

Nas “Terras Firmes Gerais”...

Nesse mundo diferente vive o caboclo

Arrastando toda sorte de perigos.

Muitas vezes a noite

Entre as paredes frágeis de seu “Tapiri”,

Quando só há vagos ruídos dentro da solidão

E quando parece que a própria viração cessa

De balançar as ramagens circunvizinhas,

Enquanto o silencio invade cada vez mais o ambiente,

É que este mundo estranho e tenebroso,

Fala do sobrenatural...

Enquanto isso,

O caboclo ainda não acostumado a esse modo de vida,

Inquieta-se e parece ver em cada canto da mata escura e silente

Motivos de pavor,

E uma sensação de intranquilidade

Invade sua alma

Que só se acalma com a aproximação do dia...

É a misteriosa Selva Amazônica nos seus momentos

De místico recolhimento.

J.C - Coluna: ITACOATIRA FATOS E GENTE

Do correspondente Roberval Vieira – 1977

Fonte: Jornal do Comércio. Ano LXXIII. Nº 22.565,

datado de 05 de novembro de 1977

“TERRA CAÍDA”, de Demósthenes

(Um quadro triste de Fonte Boa)

“Tenho em mãos o poema “TERRA CAÍDA”, de Demósthenes Ferreira Lins, tio dos meus amigos Atila Lins (Tribunal de Contas do Estado, onde é auditor) e José Lins (Subsecretario de Saúde do Estado). O poema faz parte do livro que Demósthenes Lins ira publicar e que fala sobre a sua amada Fonte Boa, numa visão geral daquele fenômeno que está acabando com a sede daquele município do Alto Solimões.

É como você mesmo diz, Demósthenes, “estruge enraivecida e espumante, a correnteza louca e desabrida, lembrando sôfrega e ligeira, a borda tremula das barrancas inseguras, e qual um monstro em pleno dorso atingido, ouve-se tremendo baque sobre as águas, e raucíssomo estrondo, saindo de enorme Fauce líquida penetra no aturdimento da própria Natureza traumatizada”. E assim Fonte Boa dos Lins vai se acabando, e que Demósthenes conta e conta neste poema que é um verdadeiro retrato de sua triste situação e que será publicado na integra, aqui mesmo em Fatos e Gente”.

TERRA CAÍDA

Demósthenes Ferreira Lins

Estruge enraivecida e espumante,

A correnteza louca e desabrida, lembrando sôfrega e ligeira,

A borda tremula das barrancas inseguras,

E qual um monstro em pleno dorso atingido,

Ouve-se tremendo baque sobre as águas,

E raucíssono estrondo,

Saindo de enorme Fauce líquida

Penetra no aturdimento da própria Natureza traumatizada.

É o profundo PERAU engolindo a Terra Caída,

Que fazendo tremer as Ravinas íngremes,

Sacode de pânico

O ocasional espectador, que aparvalhado,

Parece esperar em ridícula imobilidade

O ataque furioso dos elementos...

É o pavor dominando a paisagem convulsionada,

Porque tudo parece render-se em um movimento,

Sob o choque formidável da Terra Caída.

Que solene confusão! Que estranha zuada!

Dir-se-ia que momentâneo terremoto

Desencandeara a loucura das fúrias infernais,

Porque tudo ao redor, parece tão frágil

Ante o terrível espetáculo...

Porém, pouco depois, quando tudo mais calmo,

Quando o silêncio vagarosamente

Começa a envolver o ambiente,

Só as borbulhas barulhentas e inquietas,

Atordoadas ainda, rodopiam rio abaixo

Grudadas ao lombo barrento das aguas em reboliço...

J.C - Coluna: ITACOATIRA FATOS E GENTE

Do correspondente Roberval Vieira – 1977

Fonte: Jornal do Comércio. Ano LXXIII. Nº 22.571,

datado de 25 de setembro de 1977

Eylan Lins
Enviado por Eylan Lins em 26/03/2019
Código do texto: T6607481
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