PARA COMPREENDER A HISTÓRIA

Nunca fui pobre, mas também jamais rico. Sou ainda de um tempo em que, exceto muito poucos privilegiados, vivia-se em igualdade de condições. Não tenho a menor ideia se meus amigos em Encantado, a maioria, provinha de família com mais ou menos recursos do que a minha, mesmo que meu pai fosse médico da região. A infra-estrutura da cidade era deficitária para qualquer um e a natureza exuberante para todos. Usava guarda-pó no Grupo Escolar, ia até a escola a pé, comia a merenda servida regularmente a todos, brigava quando era caso, acho que poucas vezes, e a programação era a comum: jogar futebol nas “canchas” com quem aparecesse, bola de gude, pião, carrinho de lomba. Também jogávamos “caçador” até tarde da noite, curtíamos o Picão, no Rio Taquari, com as boias de câmaras pneumáticas e as peripécias tradicionais das “pontas” na barca que ia de Encantado a Roca Salles. Morei, aliás, em casa cuja latrina ficava aos fundos do terreno. Com o tempo e certo progresso, as coisas foram mudando, é claro, mas nada que significasse concretamente diferença com relação aos outros guris, naquilo que me tocava. Em Porto Alegre, vim para estudar num colégio de qualidade, mas meus avós eram pessoas simples, comuns e meu avô era um prestigiado líder e doutrinador espírita, completamente desapegado a bens materiais. Só continuava a comprar roupa barata, não com frequência, e a me virar com mesada escassa, pois os pais tinham mais outros filhos para sustentar. Tive, algumas vezes, dificuldades para acompanhar a programação dos colegas e do colégio, já que o dinheiro era curto. Não digo que fosse bom, mas aceitava a condição. Conheci televisão aos 11/12 anos de idade. Para não alongar-me, conto que meu primeiro carro, um Fusca usado 1966, só pude comprar aos 23 anos, já noivo: meu pai ajudou com módica entrada e financiei o saldo. Minha vida não era muito diferente da maioria, vivia-se assim mesmo, num regime de certa igualdade e bastante singelo, coisa impensável após a explosão da sociedade de consumo.