"UM NOVO QUARTO DE DESPEJO"
Onde tu moras?
Eu?... Bem!
Eu Moro na favela do dendê liso, no primeiro barraco depois da pinguela que sacode em tempos de chuvas, e a lama toma conta do mundo como se fosse à dádiva que resta para aqueles que nem em sonhos podem se dar ao luxo de morar no asfalto, que desce nas ruas dos brancos ricos, banhados por luzes a vapor e cheiro de comida italiana exalando pelas calçadas.
Vez por outra, passo perto dessa casa, para recolher papelão, latinhas, garrafas e tudo que eu possa transformar em dinheiro, e trocar esses ganhos por comida. Parece até que o Quarto de Despejo que escreveram entre 1955 e 1960 estejam hoje ainda sendo revivido, mesmo que tenhamos chegado a 2019, ou seja, 59 anos depois do seu lançamento.
Eita favela, Quantas Carolina Maria de Jesus por ti ainda trafegam?
Os luxos dos brancos? Hamm! É coisa de cinema, é pintura de francês com cardápios italianados. Acho que o macarrão deles é bem diferente do nosso. Ô se é.
Nois aqui temos isso não doutor, alias qualquer branco vestido de terno pra nós é doutor. Mesmo que seja marginais que roubam tudo aquilo que possam transformar em lucros para eles, e miséria para tantos outros que como eu, vivem gritando EU TE AMO MEU BRASIL EU TE AMO, MEU CORAÇÃO É VERDE AMARELO BRANCO AZUL ANIL... essas rimas soam melhores, quando são acompanhadas por cachaça ou com um batuque de samba feito em caixas de tomate, acompanhado na palma da mão marcando o compasso do samba malandro, desses que ainda se fala de cabrocha, de boêmio, de malandro vestido de branco, com chapéu quebrado e um sapato carrapeta em duas cores para embelezar os passos dançantes de quem conhece e sabe o que de fato é viver no morro.
Nunca deixo de carregar minha navalha, ela é o meu passaporte pra subir e descer o morro sem ser incomodado. Já ando dançando na ginga do morro, pois o corpo obedece à cadência como se ouvisse um samba sincopado, ou com a batida do partido alto. Ouço esses sons, mesmo que nem haja samba. Afinal, como disse o poeta: EU SOU O SAMBA, Sou natural daqui do Rio de Janeiro. Do rio, ou da Bahia? Afinal, de onde veio o samba? Se Salvador foi a primeira capital do Brasil, se os negros aqui chegaram e trouxe toda sua cultura nos porões assassinos dos navios, nada mais lógico de que acreditar, que o samba (verdadeiramente) nasceu na Bahia. Porém por se tratar de riqueza cultural imaterial, eu já nem me importo saber a sua originalidade, mas, atrevo-me a pensar e dizer que o samba veio da mãe África e por aqui se espalhou nos terreiros fecundo da negritude, tornando-se tão popular que houve uma mistura de cor e hoje temos essa riqueza em PRETO E BRANCO que enfeita, alegra e harmoniza a cultura do nosso povo.
E ASSIM, ATRAVESSANDO ESSA CADEIA SECULAR, e com o avanço dos anos que permeiam os nossos tempos vividos, nessa mistura de fatos e atos, que geraram tantos acontecimentos, eu posso categoricamente lhe afirmar: Os tempos não mudam Doutor. Fome, desemprego, discriminação, favela, medida de desigualdade sempre vai existir, até que chegue o dia, em que Deus matará de vez a fome de quem sonha comida, e tem pesadelos com o ronco da barriga, brigando La dentro como se fosse o ronco do som bem grave de uma cuíca tocada pelas mãos do destino, que ainda não aprendeu igualar a humanidade. E, se o Doutor me der licença, vou ali, botar o corpo pra deitar e os olhos pra dormir.
Mas olhe, amanhã, sempre existirá um novo esperançado de sonhos.
Que possamos acordar com uma mente mais humana e que nos vejamos como partes iguais de um todo, que um dia (por imposição de servidão) foi brutalmente dividido, ou separado pela ignorância no afã do poder produtor. Mas isso já passou. Sim, quero acreditar que tudo isso já passou, pois assim, poderei chegar ao meu barraco, e dormir sossegado beijando os sonhos e lambendo a esperança.