O essencial é invisível aos olhos, insisto
Tranco o portão e vou descendo a rua após ter escapado das patas sujas da Madilene. Não chove. Mesmo assim o casal de João-de-Barro, lá do seu poste habitual, cantarola com o mesmo entusiasmo de quando há chuva.
Logo ali, avistando do alto da guia da rua, o final de ponto dos micro-ônibus.
Seria melhor cortar pela viela?
O sol desde cedo brilha penetrante lá de cima. Não estou atrasado, porém, como sempre, apressado, andando em passos rápidos, quero chegar sem ser pego por ninguém no meio do Caminho. Como diz o ditado: antes cedo do que um chato no meio do caminho! E Deus livrai-me de uns e outros que passam frente ao meu portão todos os dias com o pescoção levantado, assuntando o Diabo sabe o que.
Prefiro... preferia não ter saído, mas a vida que insiste em ser ganha, quase sempre se encontra do lado de fora.
Desço, desço e desço, um a um, cada degrau do escadão. Passo por entre as vacas que trotam rua acima. Eu poderia passar horas as observando... Viro à esquerda, cruzo entre a igreja e o bar. Vejo meu pai no bar. Ele não me vê. O dono do bar não foi pego no flagrante com uma amante, doidão de cocaína. Quanto ao pastor... chabalabala abala abala chubará, sai, em nome de Jesus!
Mais à frente, viro à direita. Caminho lado a lado com o riacho poluído que flui na mesma direção que a minha. Torno a virar à esquerda. Só mais alguns passos e pronto, agora é esperar o ônibus passar.
E eis que, dentro do ônibus,
- Opa. E aí. Beleza. E com você?
- Tudo tranquilo.
- Maravilha... está quente hoje, não.
- Esquentou mesmo. Então... Fui lá na sua casa esses dias, não sei se sua mãe te avisou.
- Ah, sim. Ela comentou, sim.
- To querendo fazer um forro lá em casa, sabe, então queria ver se você me dava uma força.
- Já comprou o material?
- Ainda não. Mas vou comprar. Só preciso saber mais ou menos quanto vai custar.
- Eu apesar de montar, não tenho muito noção de preços, não. Mas vê lá, e depois me dá um toque.
- Beleza.
- Até mais.
Na verdade, o que ele queria realmente, era fazer com que eu soubesse a respeito da casa que vem construindo. Assim como, alguns dias antes, também no ônibus, falava em voz alta para que eu ouvisse, sobre a faculdade que começou a cursar. Isso sem dizer a tatuagem nova no braço que, sabe-se lá Deus o por que, fez questão que eu visse.
Deus e a Madilene sabem o quanto estou interessado nessas coisas!
Arranje um meio de não ser mais explorado (sem precisar explorar ninguém) para poder viajar, ficar de bobeira, namorar, comer, beber, escrever e dormir bem... sem nenhum estresse, e terá a minha inveja, se faz tanta questão, meu amigo!
Se soubesse meu caro, o quanto duro tenho que dar para manter esse teto sobre minha cabeça e tudo mais, não estaria competindo o que quer que seja comigo, teria, no mínimo, alguma empatia solidaria com minha luta diária.
Em que mundo você vive meu jovem, não sabes que Bolsonaro venceu as eleições? E que já elegeu seus ministros sinistros e que na internet temos os Olavo de Carvalho, Nando Moura, Mamãefalei, e mais alguns milhares de fanáticos ou, espero, seguidores desavisados, que querem ver o sangue jorrar? Por acaso, és um deles, um desses cidadãos de bem, meu caro?
Você não foi o primeiro, e infelizmente, provavelmente não será o último dos que, por mais estapafúrdio que pareça, não se conformaram por eu ter comprado esta casa. Por eu estar estudando. Não. Eu não vou perde-la. Nenhum oficial de justiça irá bater em minha porta com um pedido de integração de posse, como você insinuou da última vez que esteve por aqui me chamando, "quem é?", "é o oficial de justiça", "espera aí, só um minuto, já vou", "brincadeira, sou eu".
Quanto a tua casa e teus estudos, que Deus lhe abençoe ainda mais. Desejo tudo de bom pra você. Porém não se esqueça que tudo isso é o básico, pois, como diz o Pequeno, “o essencial é invisível aos olhos”.
.....................................................................................................
Eu não havia reparado a beleza daquelas árvores antes. Porém, numa dessas manhãs da volta, nem sei bem o motivo, me encantei com elas. Talvez tenha sido efeito do sono, pois elas, as árvores, me vieram a mente com trejeitos femininos. Suas copas, como se fossem belos cortes de cabelos.