A LEI DA GRAVIDADE NO BANCO DOS RÉUS

A sensação de uma mexida repentina no estomago nunca largara o velho e meditativo advogado criminalista que abandonara cautelosamente a mesa destinada à defesa para atender ao chamamento feito pelo juiz presidente do tribunal do júri: a defesa tem a palavra.

Na peça inicial da acusação servida de apoio à promotoria constavam as circunstâncias em que seu cliente se envolvera em caso de homicídio duplamente qualificado. Desavieram-se os vizinhos em princípio por conta das águas do prédio superior que teimavam em invadir o lote do prédio inferior. Pelas razões da promotoria soube a defesa e jurados que queda d’água cingia-se ao ponto de partida da questão.

A causa principal ia para alem de uma mera queda d’água: a acusação descrevia que o morto tentara visitar, sem autorização, a propriedade matrimonial do réu. Entre as águas rolando morro abaixo e a cama alheia salpicada por ondas de suores, restou dois enterros: um hóspede permanente no cemitério, enterrado em cova rasa para pasto dos vermes e outro enterrado na cela insalubre 3D do Pavilhão Nove da Penitenciária, como sói acontecer entre pessoas civilizadas.

O promotor foi enfático ao tracejar em voz vibrante a dinâmica dos fatos demonstrando a gravidade da conduta iniciada por questiúncula, já que de acordo com as disposições do Código Civilista o vizinho é obrigado a receber as águas pluviais que naturalmente escorrem do imóvel ao lado para o seu, pois escoam nesse sentido por gravidade.

Esquecera-se, contudo, de alertar os jurados sobre o vizinho não ter de aceitar junto com as águas do prédio o suor do proprietário escorrendo sobre o vazio da consorte e impregnar os lençóis e que o morto fora pego com as calças arriadas e outros apetrechos do vestuário masculino ao rés da cama do casal sob o peso da gravidade. Também sob os influxos da mesma lei natural a consorte mantinha sua massa inerte e nua aguardando a aproximação do outro corpo.

Não era preciso cálculos espaciais de trajetória espacial para demonstrar que a interconexão entre conjuntos humanos, sujeitos à combinação da lei da atração com a lei da gravitação, não se chama de gravidade, mas de gravidez. O vizinho preso cautelarmente e mantido enclausurado até o julgamento opusera-se às águas que enxovalhavam sua pequena horta de quintal, confrontou o adversário algumas vezes, é verdade, mas o advertido não tinha o direito de ir às escondidas, protegido pela lei do mais esperto, levar águas corporais para o interior da propriedade matrimonial alheia.

O prisma jurídico mostrava se tratar de uma boa causa a incluir-se entre os clássicos do legítimo direito de defesa, se banido do código acha-se o direito de defesa à honra.

No decorrer das horas de sustentação a promotoria em seus argumentos usara e abusara do termo gravidade, tanto no sentido de declinar a seriedade material e em abstrato da conduta quanto uma das quatro forças fundamentais da natureza, que pela teoria geral da relatividade de Einstein é uma consequência da curvatura espaço-tempo que regula o movimento de objetos inertes.

A voz da lei expressa no tom autoritário do Ministério Público realçava o fato de a Lei da Gravidade ser absoluta e que não adiantava querer puxar quem quer descer, referindo-se ao réu que fizera por merecer a descida aos infernos do cárcere. Estendia-se para que é pela Lei da Gravidade que a maçã podre sempre cai da árvore sozinha e para que a lei penal flui naturalmente de cima para baixo como a Lei da Gravidade e, silogisticamente à Cícero, falando pela boca de Cipião, concluíra que se o ordenamento jurídico pairava acima das condutas humanas e impõe-se pelo estado de cima para baixo, o homicida das águas como a crônica policial intitulara o caso deste processo deveria ser considerado culpado.

Nem místico nem mágico, o velho advogado certamente manjava pouco da clássica Lei da Gravitação Universal de Newton. O que sabia ocuparia escassos dois parágrafos. Ei-los: Em pleno século dezessete, ainda quase adolescente, um solitário matemático e físico inglês alimentava os olhos e a curiosidade com a visão do fruto proibido pendurado na macieira da vizinha que aflita, confundindo as expectativas do gênio, esperava a declaração romântica que a libertaria do temível caritó. Mas o tímido gênio lhe parecia indiferente. Assim, certo dia ao vê-lo adormecido sob a macieira, arrumou-se dentro do corpete, arregaçou a longa saia, e dirigia-se em sua direção quando tropicou, no exato momento em que uma maçã se achatava contra o quengo privilegiado. O gênio acordou tendo sobre si duas belas e suculentas peças: uma moçoila de seios balouçantes que pareciam duas grandes maçãs e... Uma maçã que embora menor atraiu a atenção do inglês.

Não, não foi propriamente a maçã, mas o fato de a maçã ter despencado do alto que deixou o cientista tão intrigado a ponto de imediatamente, entender a razão da queda dos corpos. E como a moçoila seiuda também caíra, indagou desta: A senhora sabe por que caiu? E antes que arrumasse a saia que ficara além do permitido para a época e respondesse que estropiara o dedão numa pedra, o inglês respondeu que a Terra atrai os corpos que se encontrem próxima a ela. Dois corpos quaisquer no Universo se atraem com uma força diretamente proporcional as suas massas e inversamente proporcional ao quadrado da distância que os separa.

A senhora não entendeu patavinas, pois igual a muitas lá se importava com força que atrai os corpos para o centro. Mais interessada na lei da atração que leva à gravidez do que na gravidade, dispensou a genialidade pela brutalidade carnal do açougueiro da esquina.

O velho criminalista, em seu comezinho conhecimento, adaptando a física ao caso concreto, via a força da gravidade atuar sobre as massas dos corpos humanos em interação inversamente proporcional até ser um retirado de cima do outro, desabando furado e perdendo o ânimo de não se contentar em permanecer parado no lugar.

Sob o peso da gravidade, as lágrimas da adúltera desceram para surpresa dos jurados depondo que o morto tentara, sim, estuprá-la, e que jamais traíra o marido a quem sempre fora fiel no curso de quase vinte anos de consórcio conjugal. O velho advogado anotara para a defesa que o vizinho assassinado tornara-se a gravidade para si e para a própria família.

Decerto que aquelas águas salgadas e as doces pingadas do rosto da viúva que jurara que a sem vergonha seduzira descaradamente o marido que era chamado sempre que o criminoso se ausentava se misturaram num lago de águas salobras de tristeza.

Em seus argumentos defensivos, o velho criminalista defendera a tese de legitima defesa explorando à exaustão a fixação da promotoria à Lei da Gravidade, até que vieram os esperados pedidos de aparte. O promotor incomodado intrometia-se contumazmente sempre a repetir que a bala que penetrara o coração da vítima não fora desferida pelas mãos da gravidade e sim pelas mãos assassinas do réu.

Vossa Excelência quer fazer crer que foi a gravidade que fixou a bala no tórax do falecido. O tiro fora disparado para cima e o projétil lançado para alto em razão da lei da gravidade retornou causando a morte. Ora, Excelência! Como descrevem os laudos apensos aos autos, o projétil foi lançado na horizontal, mantendo a rotação e a velocidade...

Não, Excelência. Retrucara o velho criminalista em cima das buchas. Os jurados que sabem por o termômetro no sovaco dos acontecimentos já perceberam não ter sido a gravidade sozinha que atingira o visitante noturno. Na consciência dos senhores jurados paira a imagem de um tiro disparado a queima roupa contra o facão ereto de um estuprador que tentara pela força da gravidade engravidar mulher honesta que somente não fora conspurcada pela enxurrada graças a intervenção do meu cliente que não é criminoso, mas pessoa digna que agira em legitima defesa de seu lar, de sua fidelíssima esposa, e da honra do casal.

Fique a lição a Vossa Excelência que não é preciso que os senhores jurados realizem cálculos espaciais complexos de trajetória espacial para saber que a interconexão entre conjuntos humanos, sujeitos à combinação da lei da atração com a lei da gravitação, não se chama de gravidade, mas gravidez. E nesse caso gravidez indesejada, por criminosa.

Não, Vossa Excelência. Não se trata aqui de problema da Lei de Gravidade como Vossa Excelência insiste em fazer crer. Os jurados, pensamos todos nós, aqui do tablado e da assistência, devem estar a pensar de que na próxima intervenção Vossa Excelência peça a criminalização de Deus Pai por ter promulgado a Lei da Gravidade ou que, Vossa Excelência, sim, a transforme em Lei Federal e rogue ao Douto Juiz Presidente para incluí-la no Código Penal, como tenho certeza fará assentar em ata.

Já tranquilizado o velho advogado criminalista e controlando o revoo das borboletas na barriga desdobrada sobre o cinto viu ser retirado do saco do juízo o quarto e último papelote com quesito que decretara a absolvição do cliente. Curiosamente antes de chegar às mãos do juiz presidente caíra das mãos do meirinho dando várias cambalhotas no ar antes de pega pela Lei da Gravidade.

Talvez fazendo mangoça do membro do Ministério Público quis ser protagonista no último ato deste processo. Foi, mas não neste processo... Dois dias após o julgamento, o velho criminalista fora procurado mais uma vez pelo réu absolvido para defendê-lo desta feita perante o juízo singular por agressão à esposa. Não era crime da competência do Tribunal do Júri.

Fora denunciado e assumira as agressões motivadas pelo ciúme. Ela me traiu, doutor e me descontrolei. Ao chegar a casa esperava-o o inusitado: uma criança de pele escurecida que nunca avistara em vida. Primeiro ela falou que adotara a criança, enquanto estivera fora. E isso cola, doutor? Depois confessara que “era nosso novinho”. Mas como, criatura de Deus, nosso novinho, indagara incrédulo o cliente, se estive preso por mais de um ano? É... Procurava explicação... Benhê... É que... Sabe, né?... Dia anterior ao dos fatos, o vizinho viera propor acordo de paz por causa das águas que desciam de cima do morro, sabe? Aí, tu não tando, levantando a bandeira de paz, a gravidade me derribou, o vizinho escorregou e a gravidez se agravou... Tudo culpa das águas pluviais que naturalmente escorrem por gravidade e que vieram encharcar nosso quintal...

PS.: O velho advogado criminalista, especialista em tribunal do júri, declinou o patronato da causa comum, não sabendo o desfecho, já que o bom advogado não se pronuncia sem carga aos autos. E ademais, não se sentira confortável em sustentar uma iniquidade, para não se tornar cúmplice dela. Para a defesa desta causa teria que utilizar recursos e expedientes condenáveis, porque só assim conseguiria triunfo do erro contra a verdade e o direito. Sabendo da confissão, não se via com liberdade de espírito para assumir com todos os seus meios a defesa que lhe era confiada. Que escolhesse novo advogado, com o conselho nem a advogado se confessa o crime