BENGALA DA JUSTIÇA

O velho criminalista após ouvir pacientemente o membro do ministério público que transformou o tablado do tribunal do júri em terra arrasada pelas candentes palavras acusatórias ao réu e por extensão a ele defensor levantou-se com dificuldade. Apoiando-se numa antiga bengala com castão de prata e madeira belíssima que chamam marmeleiro, dirigiu-se ao presidente do tribunal do júri, como de costume, e após ao conselho de julgamento.

- Excelências, com o passar dos anos, vergo-me à idade e recorro ao apoio desta bengala que mandei fazer com a vara de marmeleiro com a qual meu pai ensinava a mim e a meus irmãos o valor das regras, da moral e da ética. Sabedor de qualquer travessura, nos requisitava e sob vara, comparecíamos ao tribunal paterno, para julgamento e cumprimento de sentença em uma só sentada. Ou lapada, como ele dizia.

- Ele merece quantas lapadas? Era assim: quando a travessura contava com coparticipação julgávamos um ao outro. E não convinha ser complacente com os próprios ou com os costados dos irmãos. A pena mínima era de três e ele nunca passava de seis. A virtude está no meio, desde cedo aprendi e lhe transferia a responsabilidade esperando que ele fosse justo como um pai devia ser.

- Senhor, é caso de absolvição, mas se não o podes absolver, dê o mínimo, pois o senhor considera a culpa. Mas seis é pena além do necessário para remissão dos supostos crimes.

Pois Bem. Excelências, eis aqui a justiça, como a chamo. E ergueu a bengala para que o presidente e os demais a contemplasse. A justiça me sustenta desde a mais tenra idade. Ensinando-me na juventude e apoiando-me na velhice. Ocorre que dia desses, tropicando ao passar por rua esburacada, a justiça quebrou-se. Indo o velho corpo ao chão, mais lamentando o tombo do que a quebra da vara. Lascou-se em três partes. Onde mandei colocar três remendos com argolas de prata, como se vê. A justiça mesmo em remendos permanece cumprindo seu papel: recordar que as regras devem ser cumpridas e apoiar a pessoa quando dela necessite.

E não é para ser assim?

A justiça não age por si, deve ser provocada. Quiçá quisesse a vara de marmeleiro ter permanecido na campina cumprindo a sina de levar seiva à ponta da galha e fenecer findo o prazo de sua existência. Quis meu pai dela usar para educar os filhos e quis eu fazê-la exemplo a ser lembrado desde então.

O jovem promotor como vossas excelências assistiram, no vigor de sua idade, não faz uso de apoio talvez jamais tenha comparecido diante de seu pai sob vara para sofrer um julgamento justo. Ser empático e ficando no lugar do outro dosar pela medida dos seus os erros as falhas alheias. Vossas excelências ouviram: dê-lhe a pena mais severa, ele não merece absolvição.

Eu e nenhum de meus irmãos, jamais pedimos a condenação maior para o outro, mesmo que o acusado nos tivesse levado ao erro e sendo dele toda a responsabilidade. Sabíamos o quando doía a vara machucando a pele do espinhaço nosso ou alheio. O primeiro aprendizado de um promotor deveria ser o cumprimento de sentença de um só dia no presídio, para que ele soubesse o quantum pedir, sendo justo numa condenação.

Aproveitou o tempo restante para a defesa técnica em caso de absolvição quase impossível.

Ao fim, o velho criminalista, apoiando-se, sentiu a bengala partir-se, novamente, indo ao chão. Ao ser auxiliado pelos presentes, com a dignidade que lhe era própria concluiu a tese:

- A bengala, mais uma vez vem em meu socorro para demonstrar a vossas excelências que ninguém anda direito quando a justiça quebra. O ruído da vara a quebrar-se é a voz de meu pai a chegar-me aos ouvidos e é essa voz que passo aos ouvidos de vossas excelências:

- É caso de absolvição. Mas se não o podes absolver façais com que a pena não vá além do necessário para remissão dos supostos crimes.

Vara de marmeleiro. Ver aqui: https://www.conhecimentogeral.inf.br/vara_de_marmelo/