Um filho de duas terras*

Numa ensolarada manhã de domingo, o menino deitava seus olhos na curva que o rio Tietê faz, na proximidade da antiga Usina de Açúcar. Do alto, naquela espécie de mezanino onde, ao fundo, se encontra a imagem de Nossa Senhora de Lourdes, e totalmente alheio ao barulho dos muitos visitantes da gruta, imaginava ver inúmeros batelões chegando ao porto, trazendo de volta os bravos bandeirantes, narrando fantásticas histórias de um Brasil ainda desconhecido.

Os batelões, no entanto, tardavam em despontar da curva, e o menino, acordado que foi do sonho por seus pais, teve de regressar para sua terra, uma Sorocaba de traços ainda tropeiros.

Os ponteiros do Tempo percorreram uma infinidade de cursos e numa outra manhã de domingo, o menino, agora adolescente, voltou ao mesmo ponto, esperando descortinar daquela curva, finalmente, os batelões da infância. Os batelões que, infelizmente, o mesmo Tempo havia levado para as Águas da Eternidade.

E o Tempo continuou sua eterna marcha, e esculpindo a forma daquele adolescente, o fez um homem que, imerso na realidade, sabia, com o coração sangrando, que seus batelões foram abandonados à margem da Curva da Vida. E, por muito tempo, aquela curva de rio, os batelões e a própria gruta permaneceram apenas na memória daquele homem.

Mas, aqueles troncos esculpidos, feitos embarcações, não o foram para águas rasas ou portos abandonados. Aquelas árvores não foram tombadas para fazer do chão o seu túmulo. Sua seiva, feito o sangue dos bravos bandeirantes, continuava fluindo pelas veias e artérias da História. Assim sentia em sua alma o homem que ainda trazia dentro de si o menino sonhador.

Desta Terra das Monções, da qual a Vida já levara seu pai, seus parentes e amigos de outrora, em diáfanos batelões para os Rios da Eternidade, ainda restara, porém, o misterioso Código Genético da Terra que, feito sutil e inflexível cordel, entrelaçou um novo e dourado tecido, com as vibrantes cores da amizade e da cooperação.

Naquelas manhãs de domingo, nem o menino e nem o adolescente descortinaram os batelões, mas o chamado do sangue, o apelo da História retumbou entre as duas terras e estas se fizeram uma. E um Filho de Bandeirante, nascido em outras terras, ancorou, feliz, no Porto das Monções. E, a partir de hoje, deste Porto é mais um bandeirante. E, desta terra, um filho, também!

(Por meio do Decreto Legislativo n.º 391, de 25/08/ 2015, de autoria do Excelentíssimo Vereador José Luis Ribeiro de Almeida, no dia 07/10/2015, na Abertura Oficial da 60.ª Semana das Monções, recebi o título de Cidadão Porto-Felicence)

* Crônica publicada originariamente na Revista Bemporto (Porto Feliz/SP), edição de outubro de 2015.