A confissão

A CONFISSÃO
(Samuel da Mata)

Ele era um velho amigo, de longas datas, centenas de prosas, de muitos abraços e de incontáveis risadas. Não importa o assunto, nunca conversávamos por menos de uma hora. Minha patroa e a dele ja sabiam, se nos batêssemos no shopping ou na feira a programação do dia já estava comprometida. Saiamos de um assunto pra outro, pedíamos um café ou até um almoço, mas sempre deixávamos a conversa em dias. A vida é assim, há alguns vazios em nós que só são preenchidos à prestação, e por algumas pessoas especiais que nem nós mesmos sabemos o porquê.

Naquela ocasião estávamos falando de trabalho, relembrando um tema sobre o qual publicamos juntos. A parede às minhas costas era de vidro e servia de corredor para outras dezenas de salas.
Falávamos olho no olho, descontraídos e em um tom de voz acima da média em volta da sua escrivaninha. De repente, senti que ele estremeceu. Sua voz falhou e ele se apoiou na mesa e na cadeira como se sentisse algum passamento. Corri para seu lado tentando identificar o que ocorria. Liguei para sua esposa e para a emergência e tentamos colocá-lo em uma maca improvisada. Inútil, ele não aceitava, ficava ali olhando para o corredor como se tivesse visto coisas de outro mundo.

Os médicos chegaram, fizeram um breve exame, mas nenhum diagnóstico conclusivo. Dali fui pro hospital onde passei o dia, mas não ousei perguntar-lhe o que ocorreu. Eu sentia em seu olhar que ele me pedia que eu não o fizesse, era algo por demais profundo para ser discutido em público. Passei uma semana crucificado e entre o respeito e a curiosidade. Ele ficou ainda dez dias internado, ninguém soube realmente o que ele teve ou tinha. Fisicamente parecia bem, apesar de seus 75 anos.

Passados uns 15 dias, o filho dele me ligou:
- Papai quer que você vá vê-lo hoje a tarde.
Me senti impróprio, nunca me postei de capelão, mas entendi que iria tomar conta do concessionário.
Fui em casa, tomei mais um banho, tentando me preparar mentalmente para uma missão desconhecida.

Quando cheguei ele estava deitado, embora já andasse por toda a casa. Eu tentava dar um ar rotineiro à visita, brincando com o cachorro ou fazendo perguntas tolas à Emília, sua filha de uns 35 anos que o acompanhava naquele dia.
Finalmente, ele disse:
- Emília, deixe uma garrafa de café com biscoitos pra gente, e vá cuidar de outras coisas, quero conversar a sós com o meu amigão.

- Você não viu, e se visse não lhe representaria nada, mas naquela tarde a Tânia veio falar comigo. Ela chegou à janela às suas costas, olhou para mim, deu um sorriso profundo, mas não teve coragem de entrar, talvez por perceber que eu estremecia da cabeça aos pés.

- Não sei quem é Tânia, nem tão pouco a vi naquele dia. Sei que passava muita gente no corredor, mas não vi nada diferente.
- Pois eu a vi, tentei mandá-la entrar, mas minha voz fugiu. Sou sempre um frouxo nessas horas. A vi se afastando aos poucos enquanto eu sucumbia, mas ela estava tão linda, como há mais de sessenta anos, lá no colégio Duque de Caxias.

Passei o resto do dia ouvindo estórias de um garoto apaixonado, que ainda ficava rubicundo e trêmulo, como quando vira a Tânia pela primeira vez.

- Eu tinha que lhe confessar isto, mas morro de vergonha e de medo de que meus filhos e minha velha saibam o porque de eu estar doente.
Samuel da Mata
Enviado por Samuel da Mata em 01/09/2018
Reeditado em 29/11/2020
Código do texto: T6436062
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