A revolta da crase

─ Assim não dá! Assim não dá! …

Foi ouvindo estas palavras que me encontrei com a Senhora Crase, quando comecei a escrever um texto.

─ “Assim não dá!”, o quê, Senhora crase? ─ perguntei a ela, preocupado.

─ Por que, meu Deus! Por quê? ─ ela continuou.

─ Por que, o quê, Senhora Crase? ─ perguntei, novamente, mais preocupado ainda.

─ Por que os rabiscadores de papel me odeiam? ─ ela me respondeu, arrancando os cabelos.

─ Como, assim, te odeiam? Que ‘rabiscadores de papel’? ─ interpelei-a, intrigadíssimo.

─ E você, que é revisor de textos, não sabe? ─ ela me devolveu a pergunta, mais desconsoladamente ainda.

─ Vou fundar uma associação: a Associação Protetora de Crases! E você é quem vai assinar o Estatuto! ─ arrematou a consternada Senhora.

─ Eu? Assinar o Estatuto? Vade retro, Senhora Crase! Eu nem advogado sou mais! Já cumpri o meu carma!

─ E o meu carma? Como é que fica? Até quando eu vou ter que ser vilipendiada por essa gente que se mete a escrever e me assassina o tempo todo? Eu me sinto morta! Mortíssima! E isso é vilipêndio a cadáver!

─ Calma, Senhora Crase! Respire fundo e vamos conversar serenamente. Exponha as razões por estar assim tão agitada e pesarosa.

A Senhora Crase deu uma respirada ‘daquelas’ e começou a desabafar:

─ Você sabe o que eu sou, não sabe?

─ Bem, na qualidade de revisor de textos, se eu não souber o que a Senhora é, as pessoas que me contratarem para as revisões estarão fritas. E eu, mais ainda! Fritíssimo!

─ E com razão! E, a propósito, eu sou…?

─ A Senhora, dona Crase, é um fenômeno fonético (`) que representa a junção da preposição ‘a’ com o artigo feminino ‘a’ e com alguns pronomes que se iniciam com a letra ‘a’. Além disso, pode haver crase também na combinação da mesma preposição com pronomes demonstrativos que se iniciem com a letra ‘a’.

─ Vai indo bem ─ ela interrompeu, um pouco mais calma. ─ E quando eu devo ser usada?

─ Ah, a Senhora tem várias regras! Vamos a elas:

1- Se o verbo da oração exigir a preposição ‘a’ e, em seguida, houver um artigo e um substantivo feminino.

Exemplo:

prep. + artigo + substantivo feminino

Júlia levou sua irmã (a + a = à) praça.

Eles desobedeceram às normas de segurança.

preposição a (exigida pelo verbo) + artigo as + subs.feminino

normas

Fica a dica – Em uma oração, se você puder substituir o substantivo feminino por um masculino e este for antecedido por “ao”, haverá crase.

Exemplo:

Eles desobedeceram aos pais / Eles desobedeceram às normas

Júlia levou sua irmã ao teatro / Júlia levou sua irmã à praça

2- Em locuções adverbiais, prepositivas e conjuntivas.

Locuções adverbiais: às vezes, à noite, à tarde, às claras, à meia-noite, às três horas;

Locuções prepositivas: à frente de, à beira de, à exceção de;

Locuções conjuntivas: à proporção que, à medida que.

3- Ao indicar horas específicas.

Exemplo:

A reunião ocorrerá às duas horas da tarde de sexta-feira.

Horas específicas

Atenção: Quando a hora aparecer de forma genérica, não haverá crase.

Exemplo:

Passarei em sua casa a uma hora qualquer para conhecer o bebê.

Hora genérica

4- Usa-se crase nas expressões à moda de / à maneira de.

Exemplo:

Prefiro comida à francesa.

a expressão à moda de está implícita em à francesa

Ela pinta à maneira de Picasso.

5- Antes dos substantivos casa e terra, desde que não tenham o sentido de lar e terra firme, respectivamente.

Exemplo:

Residência de outras pessoas

Ela voltou à casa dos avós após a viagem.

mas

Ela voltou a casa após a viagem

seu próprio lar – não há crase

Chegamos à terra natal de nossos antepassados.

lugar específico

mas

Voltei a terra firme após um mês velejando. (não há crase)

6- Usa-se crase com pronomes demonstrativos e relativos quando vierem precedidos da preposição a.

Exemplo:

Ele não obedeceu àquela norma de segurança. |

verbo transitivo indireto pede a presença da preposição a (a + aquela = àquela)

As perguntas às quais respondemos estavam difíceis.

verbo transitivo indireto pede preposição a (a + as quais = as quais)

─ Não é simples? ─ ela questionou.

─ Bem, simples, simplizinho não é, mas, para quem se atreve a escrever, seja lá o que for, e com um pouco de paciência e estudo, dá pra escrever bem. Pelo menos no que diz respeito à senhora.

─ E por que – Deus do Céu! – tem gente que continua a me maltratar diariamente? Por que eu? Por que eu?

Eu ia responder a essa pergunta, quando, de repente, ouvi um burburinho…

─ E nós? E nós?

De repente, do nada, saltou à minha frente uma vírgula, um dois pontos, uma exclamação…