AUTORRETRATO, NOVA MOLDURA
A fotografia muda a cada etapa, a cada nova ruga, a cada mania que se transforma ou intensifica. É interessante ter consciência das metamorfoses das preferências e de certas posturas ao influxo do tempo. Mas, vamos lá. Noite muito fria com fondue de queijo ou sopa de tomate, cebola ou ervilha para manter a forma e degustar; vinho tinto (cabernet sauvignon), família, amigos e os três cuscos escarrapachados ao lado. Pinhão é de lei. Dois ou três filmes ou seriados à tarde, sempre pela TV, um copázio de leite cru gelado e gordo, futebol também pela TV, cerveja ao meio-dia (e só ao meio-dia), churrasco, pão francês com manteiga sem sal, à La minuta, feijoada, espaguete ao suco ou aquele suculento mocotó. Vai também um Sushi, no momento certo. Coca Zero sem limão nem gelo e suco de tomate temperado. Ultimamente, também uma boa pizza ou bauru gourmet, mas não tão seguidamente (a modernidade nos atropela). Viagens e festas animadas - de quando em vez, sem exageros. A casa da gente é o máximo em matéria de conforto e bem-estar. Boa leitura, internet. Bolinhos de arroz com banana, de bacalhau ou queijo, polenta, couve-flor à milanesa, pastel de carne e aipim. Muitos textos para escrever. Jornais eletrônicos, debates interessantes – difíceis de acontecer - e, cada vez mais esporadicamente, um restaurante ou barzinho maneiro, com a mulher. A lei seca e aquela do antitabagismo limitam bastante. Um "salve" ao Uber e à tele-entrega.
Porto Alegre e Gramado sempre e, quando possível, e só de tempos em tempos - bem espaçadamente - Paris, Lisboa, Roma, Buenos Aires, Bariloche, Rio de Janeiro ou a imorredoura Xangri-lá para fugir do calor - mas só no verão e por alguns dias. Uma boa sesta de 30 minutos. Sono de pedra pelas três e pouco da madrugada, para acordar depois das dez. Alvoroço de família, filhos, netos, improviso e bobagens, gargalhadas com as histórias de sempre e que se renovam a cada encontro caloroso. Comida de Natal com sarrabulho, purê de maçã, peru, figo em conserva e lombo de porco. Eventualmente, uma “paella”. Não pensem bobagens, não sou comilão e todas estas coisas têm vez e quando dá, em módicas porções, mas é interessante registrar. Mergulho no mar - azul, verde ou marrom - pé descalço na areia, rede, boa música dos idos tempos e dança. No máximo, uma hora de caminhada sob o sol. Bermuda, calça de brim, chinelo de dedo, camisa com bolsinho e ar-condicionado; no inverno, lareira. Para adoçar, sagu, arroz de leite ou ambrosia. Um tango argentino ou alguns cantos gauchescos, uma canção de Piaf, doses de Pavarotti, um rock-balada, The Platters e Beatles forever; Chico, Tom, Vinícius, João Gilberto, Elis, Marisa Monte e Caetano. Espaço também para Titãs, Legião Urbana e Skank. Discussões sobre a Mente Humana, o Ser e o Nada, o Descalabro Econômico, Finanças, a Pessoa e o Estado, o Sexo dos Anjos, o que vem por aí e o que já passou. Política também, mas sem histeria ideológica. Perto de uma hora de trabalho por dia para administrar interesses. Vontade de neve ou de uma simples geada, desconforto no verão urbano. Alguns sintomas discretos de TOC. Depressivo, características autistas? Não, não, engano de uns poucos; apenas, às vezes, introspectivo, contemplativo e um tanto alheio, perdido nas ideias. Necessidade de escrever. Crítico, especialmente com o próprio texto, mesmo que não perca muito tempo com acabamento: vai geralmente como veio. O tormento vem depois, mas passa. Finalmente, em qualquer circunstância, um cigarrinho, que ninguém é de ferro. E assim, quando me dou conta, rumo aos setenta e dois anos de idade. É pouco, é muito? Não dá para adivinhar o amanhã. E nem me interessa.