A SOCIEDADE DO AUTOMÓVEL

Um dileto amigo remeteu-me texto por ele escrito para o jornal Zero Hora, que praticamente não tenho mais lido. No seu bem elaborado trabalho de observação sobre os tumultos nos postos de abastecimento de combustível na greve dos caminhoneiros, frisa que somos “reféns psicológicos do automóvel”. É verdade. Tirante casos especiais, notadamente os que envolvem pessoas que dependem de veículos automotores para o trabalho, vivemos, no Brasil, em uma sociedade assaz dependente do automóvel, tanto quanto o transporte acabou infelizmente dependente de rodovias, relegadas outras alternativas. Somos, sim, reféns de um modelo de desenvolvimento industrial e de infra-estrutura capenga. Dito isto, quero contar que sou absolutamente ignorante em matéria veicular. Tenho até dificuldades para saber qual é o carro que vem me apanhar quando chamo um Uber. Distingo bem um Jipe, uma Rural Willis, uma Combi, um Fusca e fiquemos por aqui. Nunca fui de curtir automóvel, ainda que aprecie o conforto de seu interior e a potência da máquina. Fui um solteiro sem carro. Na praia, convencia o velho a me emprestar seu robusto Chevrolet Biscayne 1958, por algumas horas, em certos dias. Comprei meu primeiro automóvel aos 23 anos, quando já era noivo: um Fusca 66, usado, com alienação fiduciária em garantia. Com ele, viajava toda sexta à noite para o litoral ao encontro da noiva, depois esposa, mais tarde também do filho pequeno. Pela estrada velha - ainda inexistia a Free-way - com seus entreveros e perigos. Durou muitos anos comigo. Com vento a favor, ia fácil a mais a cem quilômetros por hora. “Status”, para mim, era importante apenas quando elogiavam algum trabalho profissional que fizera: veículo, nada mais do que um utilitário. O tempo passou, muitas foram as transformações, mas, em suma, hoje, quem dirige na cidade é a mulher; eu, no máximo, dirijo na estrada, quando vamos a Gramado. Lá chegando, é tudo também com ela. O carro, claro, é coisa boa, agora tenho algo bem melhor, afinal, estamos no século XXI. A sociedade de consumo gera invariavelmente necessidades ou conveniências e, querendo ou não, todos acabam sucumbindo. Se é possível dançar uma valsa com a princesa, por que insistir em um baião com a bruxinha? Todavia, em fila de posto de combustível, com a gasolina em liquidação, dificilmente vocês haverão de me encontrar, com todo respeito aos que realmente precisam. Só quero frisar que este texto escrevi em 2018; hoje, com a pandemia, parece que o veículo retoma seu conceito de utilitário para a maioria das pessoas, assim como "desenvolvimento social" é quase "decadência do império romano", implorando por novos rumos.