Armadilha

Da série: PARÔNIMOS NOSSOS DE CADA DIA

(Não quero esmolas, apenas uns trocadilhos)

Armadilha

A virulência no continente continuava a crescer num ritmo alucinante e Marília estava, evidentemente, assustada com a escalada de crimes e outras infrações que pousavam cada vez mais perto dos seus olhos. Por isso, pediu ajuda a seu marido Dirceu.

No contexto anunciado, o esposo saiu à cata de algum instrumento que pudesse utilizar para defesa e também para o ataque, se necessário. Após andanças improfícuas por terras contíguas, quedou-se macambúzio junto à árvore da praça.

— Não arvore do intento, disse Tomás, amigo fraterno e seu acompanhante na peregrinação.

— Vou me ter com Gonzaga, conhecido de um vizinho, no nascedouro da próxima semana; ele há de saber onde encontrar o objeto do seu desejo, tentou tranquilizá-lo.

— Só me resta esperar por tua resposta, disse, longânime, Dirceu.

Na segunda-feira, Tomás retornou com alvíssaras:

— Meu caro amigo, Gonzaga me disse que Antônio, seu primo de grau terceiro, sabe onde encontrar instrumento que decerto se mostrará eficaz no combate à propalada violência.

— Diga-me, Tomás, sem dilação; onde posso encontrar o tal instrumento, capaz de dar cabo a esta infame sucessão de delitos e ao mesmo tempo abonançar o coração da minha querida Marília?

— Acalma-te itinerante defensor; tua angústia chegará ao fim.

— Vamos todos, nós três, o Gonzaga, o Antônio, e eu acompanhar-lhe na empresa por terras além da costa, isoladas por camadas líquidas. Terás, no entanto, segundo informação do próprio Antônio, que reservar vultosa quantia para aquisição do precioso bem.

— Isso não é problema, garantiu o remediado Dirceu; tenho mesmo é pressa em chegar no ultramar, pois não?

A azáfama do impaciente Dirceu, tinha, além das razões aparentes, aqui já relatadas, outra justificativa, que fazia jus à revelação neste momento: o trabalho da esposa, sua Marília.

Artista diligente, em função da convulsão social que se descortinava em marcha iminente, tinha sobrestado sua lavra, por conta do status quo predominante. Sua obra estava comprometida. A artesã já não dispunha sequer de um par de nervos saudáveis para encetar qualquer atividade artística.

Ao ouvir o relato aflito do marido, o amigo interveio:

— Não te preocupes com isso; é questão de honra. Eu garanto que a obra da Marilia de Dirceu, também é nossa responsabilidade; palavra do trio Tomás, Antônio e Gonzaga.

( ).

Ultimado os preparativos, a pequena embarcação alugada, singrou, antes mesmo do sol iniciar sua vigília.

No caminho, o quarteto alternava olhares apreensivos e desconfiados.

— Prazer seu Dirceu, sou Antônio, mas pode me chamar de “totonho malvadeza”.

Tratava-se de apelido antigo que colegas o colocaram, quando do seu combate feroz a alguns desafetos que antanho se abancaram na nossa boa terra. A refrega, segundo consta, deu-se com requintes de crueldade, por parte do Totonho.

A alcunha do Sr. Antônio Carlito de Magal, adicionada das circunstâncias da sua constituição, configurava-se diante dos olhos esbugalhados do Dirceu, em atmosfera de pura aleivosia. Mas o que fazer? Por certo não cultivaria mais caraminholas; as que já possuía, eram por demais suficientes, dada a conjuntura.

A viagem seguiu sem grandes intercorrências.

Logo puderam avistar o território insular: a Ilha do Medo. Parecia mais pavorosa do que o nome que lhe era atribuído; vegetação espessa recepcionava os visitantes, a penedia imponente sugeria ocultar perigosas grutas, esconderijos perfeitos de larápios aproveitadores do desaviso alheio.

Sôfrego, procurava abstrair-se de tão inquietante visão; conveniente fazia-se crer que era fantasia, delírios de uma mente atormentada por um incômodo problema que, apesar dos indícios, ainda acreditava ser solúvel.

O pobre estava enganado. Tão logo fincou pegadas na areia, uma súcia veio ao seu encontro, capitaneada pela malvadeza do Totonho, é claro.

Quando tudo parecia perdido, seu estoico amigo Tomás e o Gonzaga, possuídos por intemperada coragem, conseguiram resgatar o Dirceu e fugiram disparatadamente pela praia, avistando uma pequena canoa que providencialmente descansava na ponta da enseada.

Ganharam a rudimentar embarcação e puseram-se a remar para uma ilhota bem ao lado, distância pífia, sendo perseguidos tenazmente pela malta.

Contudo, lamento desapontar o leitor, ao desembarcarem na diminuta ilha foram alcançados pelo bando e desta vez subjugados.

Totonho prontamente amarrou todos e gargalhou, dizendo:

— Achavam mesmo que iam escapar trocando a ilha do medo por esta? Sabe como ela se chama? Ilha da ilusão. Costuma dar às presas a falsa impressão de que conseguiram fugir, ra, ra, ra, ra...

Gonzaga estava perplexo; Tomás, constrangido, por ter envolvido involuntariamente o amigo em tão sórdido ardil; Dirceu, completamente inconsolável.

— Seu facínora, pusilânime, se era dinheiro que queria, porque não impôs condição antes de embarcarmos? Estava disposto a vender a alma em troca de tão desejado instrumento-exterminador-da-violência.

— Agora vejo que nunca existiu tal arma, não é mesmo? Gritava enquanto despejava anátemas.

— Calma doutor, respondeu Totonho com irritante cinismo, entrecortado pelos risos de escárnio dos seus comparsas.

— A arma tanto existe que vai conseguir eliminar a violência; pelo menos a nossa aqui presente.

Arrebatou do bolso do incauto Dirceu o já sabido volumoso maço de cédulas e despediu-se caçoando:

— Que arma é melhor do que essa? “Hasta la vista baby”

Partiram sem olhar para trás.

Impotente, imobilizado, a Dirceu só restava lamentar aos amigos, companheiros de cordas:

— Como pude ser tão ingênuo, imprevidente?

Resumo da ópera: nem trocadilho, nem troca de ilha, nada pôde salvá-los da humilhação. Que fim desolador para Dirceu e seus amigos.

( )

Na manhã seguinte, nos primeiros raios de sol, já sob os efeitos de desidratação, Dirceu ouviu uma voz:

— Amor? Dirceu?

Era a doce Marília que vinha inacreditavelmente acudi-los, acompanhada por homens da Guarda Costeira.

Após devidamente resgatados e reidratados, Dirceu, com fala lânguida, perguntou-lhe:

— Como vocês nos encontraram?

Respondeu-lhe a amada:

— A guarda costeira já vinha monitorando há algum tempo o tal Totonho e seu bando. Quando soube que ele praticaria mais um delito, resolveu segui-lo à distância e filmar toda a investida, para só então abordar a embarcação e prender todo o bando. É a chamada “ação controlada”, conforme me explicou o comandante.

— Mas, ..., mas por que só agora vieram nos resgatar?

— É que segundo o oficial responsável pela missão, durante a perseguição, ao fazer a abordagem, a embarcação policial foi avariada e corria risco iminente de naufrágio. Desta forma, tiveram que seguir imediatamente para a costa com os prisioneiros. Uma tempestade inesperada impediu que regressassem à ilha no mesmo dia.

— Hoje bem cedinho, me encontraram no cais, desesperada por notícias. Após me identificar, eles resolveram me trazer junto; devolveram-me ainda a quantia roubada de ti; e aqui estamos nós.

O que importa é que entre mortos (ou quase mortos) e feridos, todos se salvaram. Embarcaram de volta com a Santa Guarda Costeira. No regresso, Dirceu ficou na popa olhando para as malfadadas ilhas que iam gradativamente desaparecendo no horizonte. Enquanto as observava, abraçado pela amada Marília, pensava com os seus botões: ”o pior de tudo é que a tão procurada arma de ilha, não passou mesmo de uma bela armadilha”; “maldito Mar, ilha, bendita Marília. ”

O sol, já estendendo seu tapete dourado no oceano, refletia o sorriso aliviado dos três sobreviventes.

Ah! Ia me esquecendo do objeto central da malograda empreitada do Dirceu: A busca do “antídoto” para a onda de violência na cidade.

Ainda durante a volta, Marília lhe contou que o Presidente, sensibilizado com o caos na segurança pública da região, enviou tropas federais e instalou uma espécie de BPP – Batalhão de Patrulhamento Permanente. Foram identificados e presos diversos bandidos e a onda de crimes foi reduzida a uma marolinha. Nada mais que preocupasse a agora sossegada cidade natal.

Já se podia avistar a costa; o pesadelo ficou para trás. O sol, mais forte, ampliava ainda mais, no espelho das águas, o reflexo dos sorrisos aliviados.

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© Leonardo do Eirado Silva Gonçalves

Setembro/2017

Leonardo do Eirado
Enviado por Leonardo do Eirado em 31/05/2018
Reeditado em 25/06/2018
Código do texto: T6351188
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