A Escadaria
Da série: PARÔNIMOS NOSSOS DE CADA DIA.
(Não quero esmolas, apenas uns trocadilhos)
A Escadaria
Era uma cidadezinha encravada no semiárido nordestino, homônima da famosa imagem sacra. Seu nome? Nossa Senhora da Escada. Com o desenrolar do tempo, a denominação do município ficou reduzida à Escada; não por descaso devocional, longe disso. Apenas por praticidade na evocação, diziam os moradores. O culto à imagem, situada na ermida de mesmo nome, no entanto, não se alterou, pelo contrário. Eram longas romarias que só terminavam ao pé da Santa, depois de vencidos os 31 degraus da escadaria. O número, não por acaso, coincidia com a quantidade de degraus que separavam as margens do rio Tejo, em Portugal, da entrada da capela onde ficava o relicário original. Porém, isso é outra história. Vamos nos ater aos fatos das bandas de cá.
Alfredino, filho do “Seu” Alfredo, dono de uma acanhada granja da cidade, e de Dona Dinorah, sócia de uma não menos acanhada ótica, no povoado vizinho, era um jovem ambicioso. Queria muito prosperar por intermédio dos negócios paternos. Seus pais, obviamente, não desaprovavam tal ambição, apenas o advertiam: “Se quer subir na vida, filho, tem que trabalhar muito: de sol a sol; tem que pegar no batente desde cedo e começar por baixo, para dar valor ao suor, ao sangue e as lágrimas derramados”, diziam, com calculada afetação nas palavras, para impressionar o rapaz e dignificar o esforço que viria a ter. Alfredino não se intimidava com nada disso. Convicto do que queria, pelo seu desiderato estava disposto a qualquer sacrifício. Também tinha a questão da Santa. Os pais, devotos fervorosos, lembravam o mancebo que toda a conquista tinha de ser colocada, literalmente, aos pés da imagem como forma de agradecimento. Entendiam por conquista, o produto do sucesso que Alfredino viesse a ter no futuro.
O moço não era, por assim dizer, um beato profissional, mas por respeito à crença dos pais, não refutava as recomendações pátrias; até os acompanhava nas procissões anuais de agradecimento.
Os anos se sucederam. Alfredo e a esposa partiram de vez para o convívio pessoal com a Santa. Coube ao Alfredino prosseguir com os “empreendimentos” legados.
Trabalhou feito um condenado na granja. Percebera que as aves não engordavam muito, porque o milho que lhes era oferecido não era de boa qualidade e, que por isso mesmo, elas não ficavam com uma aparência comercial atraente. Desta forma, trocou a ração por uma melhor e mais cara. Para compensar o aumento de custo, dispensou o ajudante da granja e passou ele mesmo, nos primeiros raios, a alimentar as galinhas, dia após dia. Utilizou-se como refrigério de um velho anexim que ouvira do pai por diversas vezes: “de grão em grão, a galinha enche o papo”, devidamente modificado, após contundente constatação, para “de grão em grão, de qualidade, a galinha enche o papo”.
As aves de fato ficaram mais encorpadas e atraíram mais e mais clientes, aumentando a demanda antes reprimida.
Outrossim, atuando no negócio herdado da mãe, dinamizou a pequena ótica. Na sua ótica, precisava oferecer opções mais modernas, com design avançado, por um preço acessível. Apostava no ganho em escala pelo volume de vendas, como elemento compensador à diminuição dos preços. Dito e certo. A população precisava de “corretores de visão”; só não tinha condições de pagar o preço antes praticado. Também por questão de custos adicionais, em decorrência das matérias-primas mais onerosas, teve que, num primeiro momento, enxugar a folha de pagamento. Ele mesmo passou a montar as modernas lentes de grau nos sofisticados óculos, uma a uma. Todo o esforço valeu a pena.
O passar de novos anos trouxe a prosperidade ao exitoso empresário. Alçou voos maiores do que os das galinhas do seu pai e ampliou a limitada visão gerencial da mãe, abrindo filiais dos dois negócios nas cidades vizinhas. De fama e fortuna difundidas, trouxe progresso para a sua cidade de Escada: implantou melhorias nos logradouros e praças, construiu e doou casa populares para os mais necessitados, reformou prédios públicos, viabilizou obras de saneamento básico, candidatou-se e elegeu-se prefeito do município, com expressiva votação.
( ). Eis que se avizinhava o dia do aniversário da famosa Santa. Como prefeito, agora mais do que nunca, precisava honrar a promessa feita aos saudosos pais: depositar aos pés da padroeira da cidade o produto do seu sucesso.
No dia exato todos estavam lá: o povo, o padre, autoridades locais, e, é claro, a imprensa. Alfredino, ou melhor, Dr. Alfredino, chegou, com programado atraso, em seu veículo utilitário de última geração, com a carroceria abarrotada de sacos de grãos, galinhas e óculos de grau. Antes da “missão oficial”, praticou o tradicional populismo, distribuindo várias unidades destes itens ao povo mais carente que se aglomerava e se acotovelava ao redor da escadaria da ermida. Terminado o périplo beneficente, de posse dos sacos, posicionou-se ao pé da escada e preparou-se para a subida triunfal. Entretanto, antes de dar o incipiente passo, subitâneo, foi alcançado por um repórter da TV e da rádio local, que, pondo a mão em seu ombro, desferiu uma indagação no mínimo curiosa:
— Sr. Prefeito, analisando toda a sua vitoriosa trajetória, como pretende subir as escadas para chegar aos pés da Santa?
O chefe do executivo municipal, com tempestiva espirituosidade, olhando para o conteúdo dos sacos que carregava, disse em tom jocoso:
— Ora meu caro jornalista, pretendo subir desta maneira: “de grão a de grau”.
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© Leonardo do Eirado Silva Gonçalves
Setembro/2017