A Eliminação
A Eliminação
(Memórias de um torcedor ponte pretano)
Naquela tarde de 20 de setembro de 2017, estava eu em Niterói, no estado do Rio, quando repentinamente resolvi assistir à partida de volta, em Campinas, pelas oitavas de final da Copa Sul-Americana, entre o meu time do coração e o Sport. Na partida de ida, os pernambucanos tinham vencido por 3 a 1, porém os valorosos jogadores campineiros estavam determinados a reverter a vantagem adversária e avançar de fase na competição. O jogo estava marcado para começar às 19h15min.
Sendo sócio especial do clube, tinha acesso rápido ao interior do estádio por um portão reservado e, portanto, não pegava fila. Desta forma, fiz um breve cálculo mental e constatei que dispunha de tempo suficiente para a empreitada.
Chamei um táxi e fui para o aeroporto na capital fluminense.
No caminho enquanto passava sobre a Baía da Guanabara, percebi que o trânsito fluía rapidamente, então pensei: a Ponte (Rio-Niterói) me faz feliz.
Célere ia seguindo viagem; tirei uma goma sabor hortelã do bolso e comecei a mascá-la. Ao sentir um leve desconforto na boca, lembrei-me, nas primeiras incursões mastigatórias, que tinha feito em tempo recente um tratamento dentário que consistiu em implantar uma prótese para preencher o espaço de um dente que se ausentara da sua posição para não mais voltar. Instintivamente retirei a guloseima da minha cavidade bucal e apalpei o local em questão para então constatar que estava tudo na mais perfeita ordem: firme e forte. Aí pensei de novo: a Ponte (dentária) me faz feliz.
Sólido, continuei o percurso. Consultei a internet pelo meu celular e pude observar que os voos para o aeroporto de Viracopos em Campinas estavam bastante atrasados (não sei por qual motivo). Deste modo, se eu quisesse chegar a tempo, deveria pegar um avião para a capital paulista e continuar o trajeto de carro. A minha vontade de ver a “macaca” permanecia inabalável e por isso mesmo refiz minha aritmética mental, reformulei a minha logística e disse:
- Taxista, não vamos mais para o Galeão; toca para o Santos Dumont.
Por sorte (ou destino) o trânsito continuava a me favorecer. Decorrido mais um tempo cheguei à edificação que homenageava o nosso “pai da aviação” (embora os irmãos Wilbur e Orville Wright contestem esta declaração, não vem ao caso agora promover um exame de paternidade autoral). Ao adentrar no saguão, constatei que os voos Rio-São Paulo estavam partindo precisamente no horário anunciado. Comprei um bilhete, e embarquei na aeronave rumo ao Aeroporto de Congonhas, na capital paulista. Sabia de antemão que a duração da viagem era curta. Preocupava-me agora, reitero, o cumprimento do horário de partida. Minha mente trabalhava em moto contínuo, calculando e recalculando freneticamente o tempo que faltava para o início do evento futebolístico. Tinha a sensação de que os ponteiros dos relógios se precipitavam num ritmo suicida para os minutos seguintes, como se fossem “kamikazes”, projetando seus bólidos numa refrega contra o bom e velho hábito inglês de se chegar na hora certa. Senti um providencial calafrio e procurei dissuadir prontamente meu hipocampo da evocação histórica destes pilotos japoneses suicidas. Afinal eu estava justamente dentro de um avião que começava os procedimentos de decolagem. Decerto detestaria que tais pensamentos inoportunos se tornassem premonitórios. ( ). Passado o pequeno turbilhão de emoções, a lépida viagem seguiu sem intercorrências. Não tendo despachado bagagem, tão logo a aeronave aterrissou e estacionou em Congonhas, posicionei-me junto à porta do veículo voador e, ao se abrir, pude ganhar o salão de desembarque de passageiros e a área externa adjacente antes de qualquer outro. No caminho para o ponto de taxi do próprio terminal aeroportuário rememorei instintivamente os últimos episódios. Dos dissabores que se entremearam no meu caminho até o presente momento, o voo Rio-Paulo, tempestivo, não compunha esta lista. Sendo assim, pensei: a Ponte (aérea) me fez feliz.
Pontual, consegui rapidamente um táxi e, após o devido regateio, pactuamos, o motorista e eu, o preço da corrida para a Cidade das Andorinhas, palco do embate de logo mais. Se, durante o meu périplo, uma coisa me foi solidária na luta insana contra o tempo e pela manutenção da expectativa otimista, esta coisa, sem dúvida, foi o trânsito. A Rodovia Anhanguera ou simplesmente a SP-330, apresentava-se por demais amistosa, cedendo seu impecável tapete asfáltico para o automóvel seguir caminho sem maiores interrupções.
Quase finalizado o lesto trajeto, na entrada da cidade, ao fechar um semáforo do trecho urbano, o táxi teve que parar. Enquanto aguardava o verde luminoso dar o ar da sua graça, mesmo com a mente sobre o concreto da arquibancada, consegui ainda observar, à marginal da pista, um joguinho de bola num campinho de várzea. Pude ler no placar de madeira improvisado: Aranhas X Visitante. Um gatilho automático de memória disparou e recordei de uma maravilhosa defesa salvadora que o arqueiro, Aranha, fizera no derradeiro minuto do último jogo da fase de grupos e que garantiu a passagem do meu clube à presente fase do torneio. Aí novamente pensei: Aquela Ponte (do goleiro) me fez feliz, muito feliz.
O sinal abriu. Salvo, vencemos a inércia e nos pusemos em movimento. Quando já divisava o Moisés Lucarelli, o trânsito foi represado por uma batida de pequena monta entre dois carros, provavelmente torcedores retardatários como eu. O tempo, já exíguo, sugeriu que pagasse a corrida, descesse do automóvel e seguisse em desabalado passo até o portão de entrada do estádio. Foi o que fiz. Em tempos já distantes tal prática seria totalmente imprudente, temerária até, pois tinha sérios problemas cardíacos que me roubavam o fôlego e desalinhavam o fluxo sanguíneo. Só depois de uma intervenção cirúrgica é que eu pude, com temperança, “arriscar-me” em algum exercício mais intenso. Mais uma vez não tive como não lembrar: aquela providencial Ponte (de safena) me deu sobrevida e me deixou feliz
Sobrevivente, cheguei mais ofegante do que supunha ao portão do estádio, resignado pela suposta perda dos minutos iniciais da peleja. Para piorar, fui informado que o portão reservado aos sócios especiais fora remanejado para o lado oposto ao qual me encontrava.
- Aí meu Deus, estou perdido, falava enquanto arfava e sugava, sôfrego, pelas narinas qualquer migalha de oxigênio disponível.
- Tenha calma seu Botelho, disse-me Aluízio Ponte Cardoso, um amigo, funcionário antigo do clube e querido por todos lá.
- O jogo está atrasado por conta da demora na chegada do time visitante. As equipes ainda nem entraram em campo. Vá devagar que vai dar tempo
As palavras reconfortantes do Ponte (Cardoso, Aluízio) me deixaram aliviado e novamente fiquei feliz.
Entre a recomendação do amigo e a ansiedade, confortado, consegui chegar em passo lento ao meu portão de acesso e tomei assento instantes antes da bola rolar. A partida começou, transcorreu-se, findou-se. Cheguei a gritar 1 gol, todavia, este, filho único, mostrou-se insuficiente para o prosseguimento do time na competição. Como no dito popular, ganhamos, mas não levamos e, portanto, fomos eliminados.
Taciturno, ao sair do estádio sob o silêncio sepulcral dos demais torcedores alvinegros, ia recapitulando mentalmente a minha saga. Lembrei vividamente de todas as Pontes que, de uma forma ou de outra, se interpuseram em meu caminho. Todas me fizeram feliz e contribuíram, cada qual à sua guisa, para que eu estivesse aqui. Contudo, a principal, para o contexto desta narrativa, me deixou inditoso: A Ponte Preta de Campinas.
Da voragem cerebral, emergiu, compulsivamente, um solilóquio, longanimidade conveniente para atenuar o sofrimento: “É coisa do Esporte”. Entretanto, antes de alcançar o ponto de táxi, ouvi um chistoso comentário de um torcedor rubro-negro recifense que acompanhara meus passos de forma silente, mas com audição aguçada.
Com o sotaque característico da terra do frevo, disparou:
- Discordo de você, amigo, “É coisa do Sport”, he, he, he ...
Sorri, constrangido, sem exibir os dentes. Nos despedimos com um mero olhar de soslaio, o meu plangente, o dele complacente, e fomos cada um para o seu lado.
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© Leonardo do Eirado Silva Gonçalves
Setembro/2017