Doutora Vida
Doutora Vida
(Esta narrativa foi elaborada em 18 de outubro, dia do médico)
Acometia-me severamente uma sensação aguda.
As minhas insones lucubrações científicas definiriam como uma manifestação do nervo periférico em decorrência de um estímulo externo. Agasalhando-me de uma concepção mais filosófica poderia supor tratar-se de uma experiência sensorial desagradável. No espectro de um pensamento fundamentalista-religioso, convencer-me-ia de que era a resposta divina a um ato não chancelado pelos ditames sagrados. No universo shakespeariano descobriria ser alguma coisa que todo mundo é capaz de dominar exceto quem a sente.
Considerações conceituais à parte, em verdade vos digo: encontrava-me assoberbado de muita dor.
Posto isto, desafiei o alquebramento impiedoso, venci a parva convicção daqueles que creem que a inércia por si só dos céus angariar-me-ia a providência necessária, e pus-me a colecionar passos lépidos e trôpegos em direção ao meu automóvel à cata de algum esculápio de plantão. Não sei lhes dizer, amigos leitores, como consegui concatenar as noções mais elementares de dirigibilidade automotiva. Ao pôr o veículo em movimento, percebi que até os mais simples condicionamentos “pavlovianos”, traduziam-se em intricadas equações, dado o meu estado de completa debilidade. Descortinava-se perigosamente à frente do para-brisa um limiar entre a minha tênue consciência e o que poderia representar a minha passagem para um plano para o qual eu ainda não estava preparado, malgrado, devo confessar, que já andasse inconscientemente flertando, em tempo recente, com Hades (nota 1), quando percorri as letras dos “Encantos da Morte” (nota 2), obra freudiana, digo “Alfrediana” sobre o inquietante tema que ora se apresentava numa perspectiva real. Parecia-me fadado ao temerário desfalecimento.
Súbito, consegui arregimentar um punhado de força para o suficiente termo do meu calvário. Definitivamente não tencionava, nem na mais longínqua hipótese, “fazer uma viagem com Caronte” (nota 3).
Decorridos intermináveis minutos, valendo-me de algumas transgressões de trânsito, denunciadas pelas rotações por minuto do conta-giros do meu carro, cheguei ao onírico paraíso chamado ambulatório médico. O horário bastante avançado devassava o tímido albor. Com um esforço hercúleo, ultrapassei o umbral do dito estabelecimento, sem antes, de forma paradoxal (afinal estava em condição de desfalecimento iminente) me deter no emblema do estado da Bahia, desenhado abaixo do pavilhão estadual, à entrada do prédio. Nele, contido estava o lema: “Per Ardua Surgo”, ou em linguagem vernácula: “Pela Dificuldade Venço”. Instintivamente associei-o a assertiva atribuída a Nietzsche: “O que não me mata, me fortalece”. Aquela oportuna frase em latim sem dúvida foi um bálsamo em meio a turbação a qual atravessava.
Pois essa foi a última coisa que o meu hipocampo registrou.
( )
Acordei algumas horas depois em um leito hospitalar, no exato instante em que a médica de nome agradavelmente apropriado, conforme delatava o seu crachá, Dra. Vida, veio ao meu encontro.
- Bom dia senhor, como está passando?
Ainda aturdido, indaguei-a:
- O que aconteceu doutora?
Ela me disse:
- Não se lembra? O senhor chegou na madrugada no ambulatório médico dizendo sofregamente que estava com uma dor abdominal muito forte e logo em seguida desmaiou.
- Eu já estava de saída, porém intuitivamente, resolvi parar na recepção e aguardar mais alguns minutos. Neste ínterim o senhor apareceu.
- Mas, ..., mas, como eu vim parar aqui neste hospital?
(O hospital na verdade ficava ao lado)
- O senhor estava com o abdômen dilatado. Trouxemos o senhor para cá, fizemos alguns exames de imagem por meio dos quais concluímos que não houve lesão interna e aplicamos o medicamento adequado por via venosa.
- Então não é nada grave? perguntei.
- Ao que tudo indica, não. Precisará, no entanto, permanecer em observação por mais algumas horas. Se não tiver nenhuma intercorrência eu te darei alta, ok?
Disse-me a doutora de aparência jovial: face suave com bochechas levemente salientes, olhos cintilantes e lábios delicados que aveludavam as palavras. O conjunto esteticamente harmonioso era emoldurado por cabelos ebúrneos tudo encapsulado por um sorriso cativante.
Maktub!
(Em tempo: Pude constatar depois que a Dra. Vida, tinha dado um plantão de 24 horas e, como uma samarita, resolvera prolongar a jornada exaustiva, para certificar-se de que eu estaria bem. Por diletantismo ou compaixão, o fato é que seu gesto ficara marcado em minha mente.)
( )
Alguns dias mais tarde, 18 de outubro, prestava um exame admissional, quando ao receber a redação deparei-me curiosamente com o tema: “O que é ser médico? ”
De lembrança vívida, por óbvio, iniciei a dissertação:
“Quando alguém está em uma mesa de cirurgia, entre a vida e a morte, mesmo inconsciente, em suas instâncias psíquicas, a pessoa percebe que o médico, naquele decisivo momento, assume o papel de Deus, pois a existência ou sobrevivência do enfermo está literalmente nas mãos deste profissional”.
“Em outros momentos, ao se debater com um dilema relevante sobre qual caminho terapêutico adotar, o médico equipara-se em certa medida a um juiz, cuja sentença (diagnóstico) determinará a condenação ou absolvição do paciente perante sua enfermidade”.
“Às vezes, em determinadas situações nas quais aflições exacerbadas, decorrentes da laicidade, tomam de assomo o paciente, o médico serenamente o tranquiliza. Neste caso ele é seu amigo e protetor”.
“Outrossim, quando por negligência ou mera ignorância comprometemos nossa saúde, o médico nos chama à responsabilidade e nos ministra algumas recomendações importantes. Aí o médico representa, em alguma medida, os nossos pais e professores”.
“Essas e tantas outras circunstâncias vão substantivando ou adjetivando o médico de acordo com a percepção de cada um."
Prosseguia eu, portanto, desenvolvendo a escrita com vigorosa profusão de ideias e fôlego literário, sem descuidar, é claro, do limite formal de linhas que a redação me impunha.
No desfecho da peça dissertativa, arrematei em tom judicioso:
"Por fim, se eu tivesse que escolher uma ou duas palavras para definir o médico, sem dúvida alguma seria VIDA, ou melhor, Doutora Vida”.
Notas:
(1) Hades na mitologia grega era o deus do mundo inferior e dos mortos. Equivalente ao deus Plutão na mitologia romana.
(2) “Os Encantos da Morte” (contos) - Alfredo Gonçalves de Lima Neto - JM Gráfica e Editora Ltda. 2010.
(3) Na mitologia grega, Caronte era o barqueiro de Hades que levava as almas dos recém-mortos para o mundo inferior.
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© Leonardo do Eirado Silva Gonçalves
18 de outubro de 2017