FILHA INTERROMPIDA

A menina amava o pai, quando ele deixou sua mãe. Tê-lo-ia mantido na estufa dos seus afetos se a sua mãe, principalmente, não tivesse feito em silêncio sua campanha para imprimir na página crucial dessa história um capítulo de frieza e distância entre pai e filha. O pai era louco pela menina, e sonhou que poderia preservar o laço afetivo, sendo presente em sua vida. Por algum tempo, todos os dias eles ficavam juntos durante horas. Ele lhe dava amor, atenção e proventos, respeitava sua rejeição à nova mulher e jamais a obrigou a frequentar sua casa. Nem tocava no assunto.

Com alguns arranhões emocionais, a filha estava feliz assim. Estava, mas tinha que esconder, porque além de sua mãe sofrer com isso, a sua avó materna e quatro tias solteironas a ridicularizavam com os olhos; um silêncio gritante às vezes, e quase sempre muitas indiretas sobre o mau caratismo do pai. Hoje ela sabe que o pai não era mau caráter. Foi apenas um homem que um dia abdicou da vida conjugal com uma mulher que já não amava e teve como agravante a humana covardia de esticar uma situação insustentável, tentando achar a melhor maneira de causar o menor sofrimento possível. Fez tudo errado, machucou muito mais a filha, justamente por amá-la tanto e sonhar com uma separação em que essas coisas fôssem separadas: Deixava a mulher, não a filha.

O egoísmo das que ficaram foi o que causou de fato um sofrimento irreparável e definitivo. Todo o mundo pensou em punir o pai, conquistar a preferência da menina, mostrar o quanto ele não prestava e, na busca dessa satisfação pessoal ninguém pensou nela. Neste momento a já moça vê claramente que teria frequentado a casa paterna, jamais teria se afastado e seria muito feliz ao lado do pai, se mãe, avó e tias não tivessem - ainda que veladamente, como fizeram sem se comprometer - promovido essa distância, esse afastamento, a reincidência gradativa de uma revolta que ela até vencera na época. Elas promoveram também sua sensação de perda irreparável por ter deixado seu pai morrer sem a reconciliação com que sonhava - sempre às escondidas.

Ela o "reperdoou" tarde demais. Quando emancipou seus sentimentos e se tornou dona do amor que nunca morreu, ele já não estava ao seu alcance. A menina passou sua adolescência obedecendo ao rancor de uma, ao orgulho de outra, ao capricho de outra mais, e cresceu frustrada, incubando a carga de afeto que tinha endereço proibido, podado, sob o signo da vigilância. Pensou em todos à sua volta e ninguém acordou para sua angústia de menina louca para assumir abertamente a fascinação pelo "pai bandido". Uma menina que jogaria todas as mágoas, tristezas e frustrações para o alto e faria parte da vida nova daquele pai, se o júri familiar demonstrasse claramente que a absolveria. Que mais do que isso, a apoiaria e ficaria feliz com sua felicidade. Todos foram tão corretos e fiéis às suas convicções, mas violaram o coração da adolescente. Invadiram sua fragilidade e fraudaram seus valores.

Seu pai partiu. Tomou a nave para outro plano. Das pessoas que a usaram como arma branca para feri-lo, nenhuma foi capaz de lhe dar o número de telefone do purgatório, para onde estão certas que ele foi. Nenhuma das virtuosas se dignou a clonar o zero vírgula algo porcento de positivo daquele homem para oferecer a sua filha como consolo na solidão insondável de seus dias por mais que lhe cobrissem de presentes, presença física, palavras de afeto extremado. Fosse o que fosse. As que "fizeram tudo" por ela jamais farão caber nas aspas desse tudo o que a levaram a perder pro tempo, pras intempéries, pra vida e pra morte.

O que nunca saberão todas elas é que a dissecação da imagem de seu pai o tornou mártir naquela cabeça. Um herói da imperfeição, da fragilidade, do amor capaz de se render a fraqueza diante da sua dúvida, do seu conflito, para não a expor a um campo minado. Elas, pelo contrário, tornaram-se as suas vilãs, pelo requinte de crueldade com que boicotaram sua relação apenas dando a entender, chantageando com os olhos e as xaradas breves, ditando o veredito sem bater o martelo nem comprometer a palavra. Não sendo claras, crivavam-na das dúvidas mais insanas e não lhe permitiram decidir, defender seus sentimentos, expor a sua carência e fazer disso o que lhe aprouvesse.

No fim das contas, o legado de suas escudeiras foi esse misto de saudade, remorso, frustração, amargura e mágoa. Julgaram ser tanta coisa em sua vida e não conseguiram substituir, sobrepujar, compensar o que lhe roubaram censurando - cada qual a seu modo dissimulado - e coibindo a atuação paterna em sua história. Tiveram a guarda do amor - por um tempo ela julgou amá-las sinceramente -, mas agora a menina, hoje crescida, só sabe olhar para trás achando sempre motivos novos para justificar o fato de que não as ama. Respeita e reverencia mas não ama, por mais que tente fazê-lo e sofrer menos com isto.

Demétrio Sena
Enviado por Demétrio Sena em 30/08/2007
Reeditado em 17/08/2010
Código do texto: T631190
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