TRIBUNAL DO JÚRI – JULGAMENTO OU TEATRO?
Samuel Silva da Mata

Eram oito horas da manhã. Ambrósio, já pronto, mirou-se no espelho e pensou: Está tudo errado! Tirou a sua vestimenta tradicional e buscou no armário uma indumentária nada convencional: cachecol cinza escuro, enrolando toda a cabeça e cobrindo a ponta do queixo; casaco preto, grosso, com gola alta a cobrir as orelhas; um óculos escuro e um chapéu preto, de aba larga, enfiado na cabeça até as sobrancelhas. Não era esta a primeira vez que participava do tribunal do júri mas estava de fato incomodado. Avisou a esposa: Se eu não voltar até as vinte duas horas, saiba que estou preso.

Ambrósio chegou ao Tribunal e foi barrado, logo na porta, pelos seguranças encarregados da triagem e identificação dos visitantes.
- O senhor não pode entrar aqui deste jeito. Se quiser entrar, tem de tirar os óculos, o chapéu e o cachecol para ser fotografado.
Ambrósio reagiu, imediatamente.
- Eu sou assim e não vou tirar indumentária alguma. Se quiserem me fotografar, que me fotografem assim. Do contrário, eu vou ligar para a juíza e dizer que não vou participar do corpo de jurado porque vocês não me deixam entrar.
Assim, a portaria revistou, fotografou e cadastrou o Ambrósio e o encaminhou à sala de julgamento, acompanhado por um policial militar.
Entrando no anfiteatro de julgamento, Ambrósio despertou a atenção de todos, enquanto tomava assento em uma das cadeiras reservadas aos jurados. Imediatamente desceu da tribuna uma senhora que falou, educadamente:
- Por favor, o senhor tem de tirar o chapéu e os óculos escuros.
Ambrósio respondeu calmamente:
- Senhora, eu fui convocado para estar aqui representando a sociedade. A sociedade está cheia de doidos e eu sou um deles. Por isso, eu não posso abrir mão da minha indumentária.
Passados alguns minutos, desceu a chefe da secretaria e disse:
- Qual o seu nome, por favor?
- Ambrósio.
- Sr. Ambrósio, a juíza mandou dizer que é para o senhor tirar, imediatamente, o chapéu e os óculos escuro.
- Por favor, diga a ela que não vou tirar. Sou um representante da sociedade e não posso me descaracterizar!

A juíza, acostumada a tratar com situações embaraçosas, não se perturbou. Deve ter pensado: “Não vou perder tempo com este sujeito. Provavelmente, ele nem será sorteado.”

Dado início ao sorteio, o primeiro nome sorteado foi justamente o do sr. Ambrósio. Ele se pôs de pé, e para espanto de todos e indignação da juíza, tanto o advogado de defesa como o promotor público o aceitaram prontamente como membro do corpo de jurados. Assim, Ambrósio subiu à tribuna e tomou assento em um das sete cadeiras reservadas ao júri, acompanhado, agora, de perto, pelo policial encarregado da segurança da juíza.

Escolhidos os demais componentes do júri, a juíza suspendeu a seção e se dirigiu, de perto, ríspida mas educadamente, ao sr. Ambrósio:
- Sr. Ambrósio, eu já não lhe mandei tirar o chapéu e os óculos?
- Eu sei doutora, mas primeiro eu gostaria que a senhora me provasse na lei que eu não posso usar essa indumentária.
- Este fórum está regulamentado por lei federal e prevê um comportamento compatível com o caráter oficial da reunião.
- Doutora, eu fui convocado para, como jurado, dar a minha opinião e voto sobre o grau de culpabilidade do réu num crime de homicídio. A minha opinião eu vou dar, mas ela independe da cor dos meus cabelos, da minha fisionomia e da cor dos meus olhos. Assim, não vejo porque eu tenha que mostrar o meu rosto neste fórum, para ser marcado e perseguido por aqueles que, porventura, não gostem do resultado deste julgamento.
- Senhor, tanto eu como o promotor e o advogado de defesa, estamos também sujeitos a estes riscos, e nem por isso escondemos a nossa face. Isto é uma questão institucional.
- Não senhora. Há uma diferença muito grande. A senhora, o promotor e o advogado de defesa estão aqui por opção e são devidamente remunerados para correrem estes riscos. Eu estou aqui por força de intimação judicial, contra a minha vontade, mesmo com a Constituição Federal dizendo que ninguém pode ser obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa. Além do mais, a senhora ao sair deste recinto será acompanhada e protegida por uma força policial; o seu carro está na garagem do Tribunal e o meu num estacionamento público. Eu não sei se, quando eu sair lá fora, as pessoas que lá estarão não serão alguns amigos do réu, a minha espera para alguma represália. Assim, sou eu que tenho de cuidar da minha segurança e de minha família.
- Olha, o Senhor está faltando com o respeito para com este tribunal e posso mandar prendê-lo!
-Eu sei que pode. Mas não estou faltando com respeito ao tribunal, muito pelo contrário, é este tribunal que falta com o respeito para comigo!
- Como assim?
- Doutora, eu estava em meu trabalho quando recebi, das mãos de um oficial de justiça, uma intimação para comparecer a este fórum, na condição de jurado. O oficial de justiça me identificou e me fez assinar o termo de intimação. Então, não vejo porque, ao chegar a este tribunal, na condição especial de jurado, ser submetido a nova identificação, ser fotografado na portaria e revistado como se fosse um bandido e não alguém que veio aqui prestar um serviço comunitário. Como se não bastasse, fico ainda por mais de meia hora no auditório, entre uma multidão de pessoas que podem ou não estar relacionadas de alguma forma ao crime ou aos seus desdobramentos. Posteriormente, durante o sorteio, sou posto de pé e identificado nominalmente ao microfone pela senhora juíza, para, só então, tomar assento a esta tribuna, aos olhos de todos os presentes. Se este tribunal me respeitasse, e principalmente a minha vida, por certo eu seria recebido distintamente na portaria, mediante a apresentação do termo de intimação que recebi. Depois, seria conduzido junto com os demais jurados a uma sala, à parte, onde se procederia o sorteio, para então, se selecionado, ser encaminhado pelos fundos do auditório à tribuna de julgamento. Eu não teria, em momento algum, a minha identidade revelada ao público.
- Mas as primeiras cadeiras do auditório foram reservadas aos jurados para, exatamente, evitar a mistura dos jurados com o público.
- Ficou pior ainda a situação. Antes, ninguém sabia se eu era um jurado ou alguém da platéia. Agora, já sabendo que sou jurado, podem me encarar, me fotografar e até me ameaçar antes do julgamento. Os tribunos ingleses usam perucas brancas nos julgamentos para não terem suas imagens reveladas ao público. Sinceramente, doutora, eu prefiro ser preso a ter que mostrar a minha cara a este público. Sendo preso, amanhã ou depois estarei solto, mas tendo o meu rosto exposto, corro o risco de ser perseguido e ameaçado pelo resto da vida. Já que a lei não muda para dar segurança ao cidadão que atua como jurado, o jurado é obrigado a mudar de comportamento para buscar a sua própria segurança. Por outro lado, sei que existe a tradição de se tirar o chapéu nos atos cívicos, como sinal de respeito, por isso vou tirar o chapéu agora mas, dos óculos escuros e do cachecol em volta da cabeça, não abrirei mão. Todavia, vim de chapéu porque não tive tempo de preparar-me adequadamente para este evento, mas, com certeza, em uma próxima intimação, virei de peruca loura e travestido de mulher, porque para esta atitude não existe uma tradição que a considere afronta.

Diante da contundência das colocações, a juíza perguntou a Ambrósio se ele poderia fazê-las por escrito. Ao que ele prontamente atendeu, escrevendo, manualmente, duas a três laudas. Depois de verificar a veracidade dos fatos junto aos responsáveis pela triagem e identificação do público, a juíza admitiu publicamente que os jurados estavam sendo submetidos a um constrangimento desnecessário e prometeu, que pelo menos nas sessões que presidisse, os jurados seriam tratados de forma diferenciada. Ambrósio participou normalmente do julgamento, fez questionamentos ao réu e testemunhas, mas manteve sempre com o seu rosto coberto pelos óculos escuros e o cachecol.

Passados quatro dias, Ambrósio se dirigiu, espontaneamente e em trajes normais, àquela vara criminal solicitando audiência com a juíza. A chefe de secretaria informou que a juíza não poderia atender por estar tomando depoimento de testemunhas relacionadas a um outro processo. Ambrósio insistiu dizendo:
- Por favor, comunique à juíza que, Ambrósio, o jurado, está aqui e gostaria de falar com ela. Se ela não puder me atender ou quiser que eu venha em outro dia, não tem importância, mas fale com ela, por favor!
Diante, da insistência de Ambrósio, a secretária comunicou a presença do mesmo à juíza. Em seguida, disse a Ambrósio que o aguardasse na ante-sala que a juíza iria atendê-lo. Passados alguns minutos, a juíza, interrompendo os depoimentos, veio, com uma de suas assessoras, atender o Ambrósio. A assessora olhou Ambrósio, de cima para baixo, e disse:
- Ah! Então foi o senhor que fez aquela cena no tribunal na semana passada?
- Minha senhora! Eu não fiz e nem estou aqui fazendo graça. A minha vida é uma coisa muito séria, pelo menos para mim, senão, eu não estaria aqui para falar com a juíza!
A juíza, meio que entre os dentes, esboçou um pequeno sorriso, cutucando com o cotovelo a assessora e disse:
- Pois não, sr. Ambrósio, o que o sr. quer falar comigo?
- Doutora, estou tentando a alguns dias falar com a senhora, mas não consigo. Não encontrei o seu telefone nem o seu endereço em nenhum processo.
- Não entendi. O meu telefone e meu endereço não constam em processo algum.
- Certo, doutora. Mas, o nome, endereço, telefone comercial, residencial e celular de todos os jurados estão afixados nos processos a, pelo menos, quinze dias antes do julgamento, com livre acesso às partes. Tal procedimento põe em risco a segurança pessoal e familiar de todos os jurados. Eu não sabia, mas vi que as intimações que nos são apresentadas pelo oficial de justiça são afixadas ao processo. Mas isso não é o pior doutora. Eu garanto que, da forma que vem se procedendo, nada impede que qualquer das partes já tenha feito contato antecipados com os jurados para suborná-los ou intimidá-los. Assim, a senhora já não sabe se os processos que foram concluídos até agora neste tribunal foram de fato julgamentos ou meras formalidades teatrais.

Ambrósio foi novamente solicitado a apresentar suas colocações por escrito, o que o fez prontamente, mas não obteve respostas nem tampouco foi mais convocado para o tribunal do júri, embora tenha completado sua indumentária com peruca, dentadura e bigode postiço.

                    ------------------------------ xx ----------------------------------------
Ambrósio, personagem representativo de uma cena real ocorrida em um tribunal de Sergipe, num acesso de ousadia quase insana, e mesmo sendo indouto em matéria de direito, chama a atenção pública e coloca em cheque os procedimentos adotados nos tribunais brasileiros, pelo menos nos seguintes aspectos:
- È constitucional a convocação compulsória de cidadãos para fazerem parte do Tribunal do Júri? Tal atitude não fere o princípio da liberdade individual prevista na Constituição Federal?
- Já que o Estado não tem como dar proteção nem a seus próprios magistrados, tem ele o direito de identificar e tornar pública a identidade dos membros do tribunal do Júri?
- A lei prevê a nulidade do julgamento em casos de comunicação dos jurados com qualquer das partes do processo. Todavia, o próprio tribunal afixa em edital público, trinta dias antes do julgamento, os nomes dos cidadãos intimados para comporem o Tribunal do Júri e das empresas onde trabalham; Os termos de intimação, com todos os dados dos jurados: nome, telefone e endereço, são afixados na peça do processo muito antes da realização do julgamento. Tais procedimentos não são uma quebra do princípio da incomunicabilidade entre as partes e os julgadores?
- A identificação pública dos jurados durante o sorteio para composição efetiva do corpo de jurados e o tratamento nominal dos jurados por parte da defesa e até da promotoria, durante a seção de julgamento, não são fatores de intimidação que comprometem a imparcialidade dos jurados, já conhecedores da falta de segurança a que estão expostos?
- Quando as testemunhas são convocadas a depor em audiência com o juiz e na sessão de julgamento, a presença ostensiva do réu e sua visão direta à testemunha não são fatores que comprometem a veracidade do depoimento da testemunha, identificada publicamente e conhecedora da debilidade do Estado em dar-lhe a proteção devida?
-O advogado de defesa e o ministério público assistem e fiscalizam a votação dos jurados quanto a culpabilidade ou não do réu, representando não somente os interesses do réu como os da sociedade. Tal procedimento não poderia ser também adotado na seleção e sorteio do corpo de jurado, evitando a exposição pública dos mesmos?
- Será que a exposição direta dos tribunos e testemunhas ao réu nas audiências e na seção de julgamento é uma plenitude da justiça ou um fator limitante a realização da mesma?
- Como acontece com os fiscais de concursos públicos, não poderiam os candidatos ao tribunal do júri serem pré-selecionados por evento, através de edital público, e participarem do sorteio para compor a tribuna mediante uma expectativa de remuneração, bancada pelo Estado e compatível com o risco da exposição a que estão sujeitos os jurados?




 
Samuel da Mata
Enviado por Samuel da Mata em 10/04/2018
Reeditado em 10/04/2018
Código do texto: T6304508
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2018. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.