O cavalo

Abro a janela e vejo o cavalo puxando a carroça. Um cavalo soberbo, admirável. Puxa a carroça como se executasse o mais nobre dos ofícios. É negro, as gotas de suor brilham ao sol no seu dorso. Caminha a passo, solene, no meio da rua.

Os carroceiros são um casal de pobres, magros, mal vestidos, que deixam de longe – pois eu os olho bem de longe – entrever a fome e a dor. Mas eu os observo mais atentamente, observo-os muito atentamente e vejo o orgulho com que conduzem a carroça e o cavalo.

Tinham tudo para ser dois pobres coitados, mas eram nobres, soberbos, admiráveis. Como se a grandeza do cavalo os contagiasse. O homem olhava para a mulher, a mulher olhava para o homem, ambos olhavam para o cavalo, e sorriam, superiores.

Erguiam a cabeça, o queixo, a testa, os ombros, erguiam a alma. Mostravam-se, exibiam-se, eram as mais felizes criaturas do mundo. O homem e a mulher olhavam um para o outro e depois, paulatinamente, muito devagar, olhavam para os lados, para o público.

Sim, senhores. Só faltava descobrirem-se, e desdobrarem-se numa vênia muito bem medida, à espera dos aplausos. Por que haveria tão poucas pessoas nas ruas? Onde estava o seu público que não vinha aplaudi-los, que não vinha contemplá-los com inveja, com respeito, com mortificação.

Sim, meus senhores, com mortificação: porque não estavam à altura de tão majestáticas figuras, porque eram reles passantes, reles figurantes desse drama que se desenrolava a seus olhos apalermados. A glória do cavalo negro, imponente, rebaixava de imediato a quem não estava à sua altura.

Pensei em Machado de Assis, não poderia imaginar que na vida real – mas o que é a vida real?... Na banal vida que conhecemos existem personagens machadianos, com a lhaneza, a sobranceria castiça da pena feita de galhofa e melancolia do velho bruxo?

Pensei em Machado de Assis e seu reles personagem todo pampeiro a olhar... as botas! Querem idéia mais vulgar?! Pois o distinto olhava as botas e, num átimo, punha-se senhor do mundo! Podia desabar o seu mundinho desconcertante, mas ele tinha botas novas, que brilhavam, que refletiam as casas e os olhos míopes das pessoas, ele era, portanto, senhor do mundo.

O mesmo se dava com os meus dois pobres diabos, aconchegando a sua miséria esquelética no alto da pífia carroça, que se esgueirava perigosamente entre os carros, os ônibus, as motos, os caminhões. A pífia carroça, mas puxada por um cavalo soberbo, único, inigualável.

Eles eram os senhores daquele cavalo de fábula. Adeus, desgraça da vida que passa, e, porque passa, não merece ser levada em consideração. A vida e sua desgraça não são nada diante do nosso cavalo. O nosso cavalo!

Da minha janela, do alto do meu sétimo andar, do meu ridículo sétimo andar, vejo com pena o grande cavalo e seus grandes donos. Vejo com pena – de mim mesmo! Prisioneiro das grades de minha janela, pequeno, insignificante, sou nada diante desse cavalo e seus donos gloriosos.

Sou capaz de ver que o trânsito pára – e homens e coisas curvam-se à passagem do cavalo e seus donos. O cavalo, indiferente, superior, nem percebe. Os donos, porém, quase explodem dentro dos seus peitos pobres, que o orgulho infla como um balão – e sobem no azul, para longe da nossa indigna incompetência.