TRAÍDO PELAS CIRCUNSTÂNCIAS
Consoante afirmei em crônica anterior, acautelo-me da perda de memória, baqueada no decorrer dos anos. A lembrança é uma faculdade que nos ocorre como testemunha de nosso passado, pois, conserva e lembra estados de consciência remotos, sejam eles alegres ou tristes, agradáveis ou não.
Alcançada pela ação inflexível do tempo, a memória chega ao ponto de não nos permitir lembrar fatos antigos e até mesmo recentes. Antes que tal me aconteça, compartilho com meus assíduos leitores alguns acontecimentos distantes. Se interessantes, não sei. Eles que o digam.
Para escrever, vasculho na lembrança eventos antigos, alguns de pouca significação. Não importa. Trago-os a lume para, se possível, desopilar o fígado dos leitores, aliviando-os do mau humor e da melancolia, transtornos psíquicos em abundância nos dias atuais.
Mas, o que direi, hoje, aos meus leitores? Relatarei uma historiazinha que lhes sirva para matar o tempo ocioso e, para mim, escrever alguma coisa. Um pouco que seja! Mesmo sem muitos ou nenhum atrativo. Eis do que lhes falarei:
No edifício onde mantive escritório do centro de Brasília, havia um bicheiro, apontador de loteria zoológica, chamado Justino, de setenta e cinco anos de idade, cútis morena, de poucos atrativos físicos.
Certa vez, Justino foi levado ao Recife por uma equipe de uma emissora de televisão, que arcou com as despesas da viagem a fim de fazê-lo rever a capital do seu estado natal. Hospedaram-se no Hotel Boa Viagem, sendo registrado como escritor, uma verdade relativa, pois ele escrevia, porém, em blocos de “pule”, com sua letra beirando o indecifrável.
Justino não tinha mulher com quem dividir o leito. A mãe de seus filhos, um rapaz e uma menina adolescente, o deixara quando se enamorou de um garrafeiro, com quem traiu repetidamente o velho apontador do jogo do bicho. Ela apaixonou-se pela voz do jovem, ao gritar pelas ruas enlameadas onde morava:
– Garrafeiro! Olha o garrafeiro!...
Separado matrimonialmente, Justino desfrutou a convivência amorosa de uma senhora, esposa de um paraplégico. O pobre homem não dava conta da mulher, cabendo a Justino suprir as necessidades da espevitada concubina.
Talvez, por consequência da saúde do marido, a mulher deixou de encontrar-se com Justino por vários dias. Cansado da espera, ardendo de desejo e carente dos amores roubados do pobre deficiente físico, o velho bicheiro foi à casa daquela mulher. Em lá chegando, foi atendido por ela, à porta, empurrando a cadeira de rodas do inválido.
– Boa-tarde! – A senhora é dona Virtuosa? – Vim dizer-lhe que seu emprego está confirmado. Poderá iniciar o trabalho imediatamente – disse Justino para despistar e iludir a vigilância de dois filhos da senhora, que acorreram ao inesperado encontro.
– Deve ser engano. Não conheço o senhor e não lhe pedi nenhum emprego – respondeu dona Virtuosa, sob os olhares dos filhos, manobrando a cadeira de rodas e fechando a porta da casa.
Dias depois, Justino encontrou-se com a mulher. Não falaram do acontecimento daquela tarde. Deitados em modesta cama de certo motel, a senhora falou com notória timidez:
– Parece que cresceu!
Justino apenas riu, maravilhado de seu desempenho. Sem mais dizer, entregou-se ao amor bandido. Antes, lamentou a situação do velho paralítico.