Segóvia – Patrimônio Histórico da Humanidade
Sempre inicio minhas narrativas de viagens consultando meus alfarrábios, filmes e fotografias produzidos durante os passeios turísticos. Também pesquiso bastante sobre a origem do lugar que nos acolhe e cito detalhes de sua história, recheada de acontecimentos marcantes. Como não poderia ser diferente, com relação à Segóvia, eis o que tenho a contar, caros leitores:
Chegamos a Segóvia procedentes de Ávila. O percurso de pouca duração foi efetuado em ônibus de turismo, desde Madrid. A cidade está situada na província de igual nome, pertencente à comunidade autônoma de Castela e Leão. Medindo 163,6 quilômetros quadrados de extensão territorial, abriga uma população de 52.000 habitantes. Erguida a quase mil metros do nível do mar, encontra-se banhada pelos rios Eresma e Clamores.
A mitologia e a história secular nos informam que Segóvia teria sido fundada por Hércules Egípcio, bisneto de Noé, por volta do ano 1076 a.C. Tal lenda não se sustenta se comparada a outras especulações, estas, sim, mais próximas da realidade.
Escavações efetuadas no vale do Eresma revelaram vasos, moedas de bronze e outros objetos da Pré-história, isto é, do tempo que se estende de 7000 a.C a 2500 a.C.
Estudos e pesquisas indicam que a origem de Segóvia teria sido patrocinada por remotos povos, talvez por iberos, arévacos, vacceos e celtas. Os iberos foram antigos habitantes da Ibéria, atual Espanha; os arévacos habitavam aldeias que se estendiam pelas margens do rio Douro; os vacceos eram vizinhos dos arévacos, e os celtas, já apresentados ao leitor em páginas anteriores desta narrativa, eram povos organizados em tribos espalhadas pelo oeste da Europa.
Durante os séculos XIV e XV, Segóvia conviveu harmoniosamente com cristãos, muçulmanos e judeus, etnias que se espalhavam por locais distintos. A cidade, então, estava dividida em três comunidades.
Depois do desembarque do ônibus que nos conduziu à cidade, saímos fotografando as belezas do lugar. De todos os ângulos, registramos, para memória de nossa visita, o maravilhoso e monumental aqueduto, com 728 metros de extensão, altura máxima de 28,9 metros e 167 arcos, o que nos faz lembrar, em proporções menores, os arcos da Lapa, no Rio de Janeiro.
O aqueduto é o principal símbolo de Segóvia e a mais importante obra executada pelos romanos, empreendida, talvez, no final do primeiro e início do segundo séculos de nossa Era.
Lenda reinante à época atribui a autoria da construção do aqueduto a Hércules Egípcio, aquele mesmo que teria fundado Segóvia, conforme relatado no início deste capitulo. Os místicos do passado, porém, descrentes do poder divino, conferiam a autoria da imensa construção ao diabo. Essa última e infernal hipótese deveu-se a suspeita de que certa jovem, de nome Juanilla, que diariamente buscava água nas proximidades, teria feito um pacto sinistro com Satanás, oferecendo-lhe a própria alma em troca de o precioso líquido chegar à sua casa até o cantar do galo. Estava ela em oração de arrependimento pelo diabólico pacto, quando o galo cantou.
Naquela ocasião, o dia raiou mais cedo, como resposta de Deus às orações da jovem, permitindo que os construtores colocassem a última pedra no aqueduto. Portanto, a enorme estrutura foi concluída sem méritos para Satã, derrotado pelo poder divino, a despeito do que apregoaram os místicos de então.
O aqueduto foi declarado, em 1884, Monumento Histórico e Artístico, título honorífico também concedido ao Alcázar, à Torre de São Estevão, ao Monastério do Parral e à Igreja de Vera Cruz. Desses espaços, falarei mais adiante. Em 1941, ano, aliás, do meu nascimento, o centro antigo da cidade foi igualmente considerado Monumento Histórico e Artístico, para, em 1985, ser contemplado pela UNESCO com o título de Patrimônio Histórico da Humanidade.
As muralhas de Segóvia não se igualam, esteticamente, às de Ávila. Pareceram-me mais singelas do que aquelas. Não digo inferiores, a ponto de desqualificá-las como obra de expressão da arquitetura medieval. Pelo contrário, merecem a atenção dispensada àquelas. Tais muralhas medem quase três quilômetros de extensão, portanto, equivalem-se às de Ávila, mensuradas em 2,5 mil metros.
Em toda a extensão das muralhas segovianas restam apenas três das quatro portas primitivas. As que foram conservadas são: Porta de San Cebrián, a mais simples, localizada na parte antiga da muralha; Porta de Santiago, que guarda aspectos da arquitetura mudéjar, ou seja, estilo do povo árabe que permaneceu na Península Ibérica depois de reconquistada pelos cristãos; e a Porta de San André, que se abre para o bairro judeu.
Depois de frugal refeição, Matilde, Márcia e eu saímos pelas estreitas ruas segovianas, palmilhando cada espaço que nos levaria ao pátio da catedral. No percurso, dificultado por desconhecermos o caminho, fotografamos o que se nos deparava pela frente. As íngremes ladeiras exigiam muito esforço físico, agravado pelo calor abrasador do verão europeu.
Finalmente, chegamos a Plaza Mayor, amplo pátio nas proximidades da Catedral de Santa Maria, por volta das treze horas. Cansados e suados, porém dispostos a contemplar o que se nos seria oferecido na oportunidade.
O templo ainda estava fechado à visitação pública, o que nos fez perambular por algum tempo pelas imediações, em visitas a lojas, principalmente de sorvetes. Ali, fotografamos a não mais poder. Ademais, necessitávamos dessas fotos para instruir o nosso álbum de recordações.
Iniciadas as visitas, adentramos a Catedral de Santa Maria de Segóvia, conhecida como a Dama das Catedrais, epíteto que lhe foi atribuído graças às generosas dimensões de sua arquitetura em estilo gótico, cuja construção ocorreu entre os anos de 1525 e 1768, 243 anos de muito trabalho e expectativas.
O magnífico empreendimento cristão foi erigido no local da antiga catedral, localizada nas proximidades do Alcázar (castelo fortificado), destruída por um incêndio ocorrido em 1521, durante a Guerra das Comunidades. Esse confronto belicoso aconteceu durante o reinado de Carlos I, nos anos de 1520 a 1522.
O início da construção da nova catedral, medindo 105 metros de comprimento por 50 de largura ocorreu em 8 de junho de 1525. O edifício dispõe de três torres, a mais alta com 88 metros, enquanto a da nave central mede 33 metros de elevação. Em 1768, o magnífico templo foi consagrado à fé cristã. Como já vimos, foram 243 anos de ingente trabalho, perseverança e obstinação.
Em visita ao interior da catedral, andamos por generosos espaços físicos, compostos de três naves, as laterais com 18 capelas, belos vitrais dos séculos XVI e XVII, ornadas com geniais afrescos e esculturas de igual concepção.
Contemplamos uma profusão de obras da mais alta significação artístico-religiosa. Tentarei descrever algumas dessas preciosidades da arte sacra, pedindo, previamente, perdão ao atento leitor por possíveis omissões.
Eis o que vimos na Catedral de Santa Maria de Segóvia: O Altar Mor, instalado na nave central, rico em objetos litúrgicos, confeccionados em ouro ou dando-lhe tal semelhança, é ladeado por robustas e imponentes colunas em estilo gótico, arqueadas na parte superior, e encimado por teto engenhosamente trabalhado por mãos habilidosas.
As dezoito capelas das duas naves laterais merecem descrição à parte, nas quais citarei a existência de valiosas obras, quais sejam: La Pietá, de Juan de Juni, datada de 1571, exposta no retábulo da Capela da Piedade; telas de Alonso de Herrera, datadas de 1600, expostas em majestoso retábulo de autoria de Pedro de Bolduque, construído em 1595; Cristo da Agonia, de Manoel Pereira; Virgem da Paz, do século XII, embelezando retábulo da Capela Maior, construído em mármore e bronze, e, ainda, estátuas, retábulos e inúmeras relíquias sacras, além do Museu da Catedral, estabelecido nas dependências do templo, onde poderão ser apreciadas obras tais como o Facistol, ou seja, estante onde são guardados livros nos coros das igrejas, de autoria de Vasco de La Zarza, e carruagem do século XVII, da lavra de Rafael González.
A Sala Capitular, local da realização do capítulo, isto é, reunião da classe clerical, é um belíssimo ambiente, decorado com um crucifixo do século XVI e lindos tapetes do século XVII, os quais refletem cenas que narram a vida de Zenóbia, rainha de Palmira, na Síria do século III.
Estivemos no Monastério do Parral, obra edificada pelo rei Henrique IV, cuja igreja adjacente, de 1477, belíssima, foi construída pelo marquês de Villena, em virtude de graça alcançada por ele, com a intercessão da Virgem Maria.
No interior do templo, contemplamos excepcional retábulo do altar mor, com acabamento dourado, composto de esculturas de Juan Rodriguez, de 1528. Nesse retábulo, estão os restos mortais de Juan Pacheco e Maria de Portocarrero, marqueses de Villena.
Visitamos o Alcázar, palácio fortificado de excepcionais condições defensivas para uma época desprovida de armas devastadoras como as de hoje. Essa fortificação tem existência comprovada por documentos do século XII.
Considerando as ótimas condições de defesa do castelo, e tendo em vista o desenvolvimento da cidade, aliado à predileção da família real por Segóvia, o Alcázar foi transformado em casa real. Para conforto da Casa de Trastâmara, o edifício foi reformado, decorado ou embelezado por artesãos e pintores moriscos, povo árabe que invadiu a Península Ibérica. Dizem ter ficado a “cara lavada e ensaboada” do Palácio das Mil e Uma Noites. A expressão entre aspas, utilizada jocosamente por este escriba, lembra dito da verve cômica do saudoso personagem Odorico Paraguaçu, em cenas hilariantes do seriado o Bem Amado, da Rede Globo de Televisão.
Sem pretender desqualificar os conhecimentos do nobre leitor, convém esclarecer-lhe, com sua devida vênia, o significado da expressão Casa de Trastâmara. Casa, simplesmente, significa o conjunto de membros de uma família. Nesse caso, Casa de Trastâmara ou Dinastia de Trastâmara era o ramo da Casa de Borgonha, de 1369 a 1516, reino fundado por Henrique II, governante de Castela. Trastâmara, isoladamente, era o nome de um condado do noroeste da Galícia.
Lenda daquele tempo insinua que o raio caído na câmara real, ou seja, no quarto de dormir do rei Alfonso X, O Sábio, teria sido um castigo divino por Sua Majestade pretender ser mais inteligente do que o seu Salvador, Jesus.
No ano de 1764, o rei Carlos III instituiu na fortaleza de Alcázar o Colégio de Artilharia. Durante anos, esse bem concebido empreendimento serviu à formação de cadetes para as forças armadas espanholas. Em 6 de março de 1862, incêndio de grandes proporções destruiu quase que totalmente o suntuoso edifício.
Em 1940, o palácio ou castelo, como convém a alguns dos leitores, foi restaurado do infortúnio que lhe acometera. As reformas foram baseadas em plantas e desenhos de 1840, existentes na Escola de Belas Artes de Segóvia.
Restaurado física e documentalmente, o Alcázar ali está para receber os milhões de visitantes que o buscam, ávidos por conhecê-lo. Matilde, Márcia e eu, no mês de julho de 2017, fizemos parte dessa legião de turistas das mais variadas nacionalidades.
Foi agradável e proveitoso o passeio efetuado ao Alcázar. Visitamos as muitas dependências da antiga fortaleza, a fim de conhecermos, in loco, os interessantes lugares e objetos marcados por sua rica e histórica existência física.
Ainda nas dependências do castelo, estivemos na Praça do Relógio, cujo nome lhe é atribuído graças ao relógio de sol fixado em uma de suas fachadas, por sinal, amplas e bem conservadas; no Pátio das Armas; nas salas contíguas do antigo Colégio de Artilharia, e nos cômodos do que fora o palácio dos reis de Castela.
Conhecemos a sala onde estão expostos armas, armaduras e demais instrumentos bélicos, além de telas pictóricas, exibindo detalhes de batalhas e figuras ilustres de reis e rainhas do século XIX.
Estivemos na Sala de Despachos do rei Felipe II e na Sala do Trono onde se realizavam as audiências reais. As cadeiras do trono onde sentavam Suas Majestades, o rei e a rainha consorte, ficavam sobre pequeno pedestal composto de quatro degraus. O trono que vimos é uma reprodução do modelo usado pelos reis católicos, Fernando e Isabel.
Conhecemos a Sala dos Reis, a mais ampla e luxuosa do palácio. O teto é requintadamente bem elaborado, contendo um friso com 52 imagens dos reis das Astúrias e de Leão e Castela, desde a época de Don Pelayo até Juana, a Louca, rainha do reino de Castela e Leão, de 1516 a 1555. Don Pelayo foi o primeiro monarca do reino das Astúrias.
A Câmara Régia ou o Quarto Real de Suas Majestades exibe lindos tapetes forrando as paredes e um teto soberbamente bem decorado com pinturas alegres e vistosas. A cama de Suas Altezas Reais me pareceu pequena, porém confortável, com cortinas laterais e detalhes arrematando a parte superior. Na parte inferior da cama estão esculpidos os brasões do reino de Castela e Leão. Do teto, lindo candelabro pende harmoniosamente com a decoração ambiental. Os móveis, fabricados em mogno, são constituídos de uma poltrona, mesinha tipo aparador e de uma estante.
Visitamos a Sala do Cordão ou Sala del Cordón, em espanhol, assim denominada em face da existência de um cordão de São Francisco, aquele usado pelos frades em volta da cintura, mandado colocar no recinto pelo rei Alfonso X. Ali, encontram-se, afixadas às paredes, diversas pinturas com motivos religiosos. E, também, um confessionário de madeira para os reis revelarem os seus pecados às autoridades eclesiásticas.
Antes de nos despedir do Alcázar, estivemos na Sala do Toucador da Rainha e na capela palaciana, lugar que exibe lindo retábulo com detalhes da arte gótica, do século XVI. Todos os locais visitados são testemunhas de ricas histórias, algumas reveladas nesta narrativa.
Assim concluo a série de crônicas sobre as viagens realizadas a Portugal, Ilha dos Açores, Itália e Espanha. Terminei a feitura do livro, intitulado Turismo – Um Ato de Amor ao Corpo, à Mente e ao Espírito, versando sobre esses agradáveis passeios. A narrativa, constituída de 252 páginas, abrange texto e fotografias. Matilde, Márcia e eu a temos como "recuerdo" dos dias passados em terras de além-mar.
Agradeço a benevolente atenção do estimado leitor. A leitura das crônicas adaptadas dos capítulos do mencionado livro é prova de nossa sincera amizade.
Um grande abraço aos fieis amigos deste arremedo de cronista, um escrevinhador impulsionado pela generosidade de suas atentas leituras.
Até a próxima oportunidade!