NÃO É O QUE VOCÊ É. MAS O QUE VOCÊ SIGNIFICA

20/10/2017 - 0h28

Uma vez vi um trecho de uma missa do Padre Fábio de Melo, onde ele falava da importância de você significar algo pra alguém. Não importa o que você tem, o que você é. Mas o significar.

Isso foi muito forte pra mim e muito revelador também. Principalmente pelo que eu e minha família estávamos vivendo em relação ao meu padrasto em um hospital.

O hospital é um lugar triste, transitório. É o que podemos chamar, em antropologia social, de um não-lugar. Você está lá de passagem, assim como quando você está em um aeroporto. O legal é quando você está recebendo um tratamento e, de repente, você tem essa possibilidade de se curar, de sair de lá o quanto antes. O complicado é quando dizem: “No caso dele, não tem mais cura. É um paliativo, uma sobrevida”. Nesse momento, é como se virassem uma ampulheta. O tempo, cada vez mais, torna-se precioso. Nenhuma gota pode ser desperdiçada. Cada instante é como se fosse o último. E aí, a gente procura aproveitar o máximo.

E a pessoa está lá, numa cama. Ela não tem como sair de lá. As pernas pararam. Não se movimentam e não sentem nada. Nesse caso, pode até representar uma sorte. Porque as pernas se tornam um bom local para se aplicar as injeções diárias ou dar aquela espetada no dedo dos pés para coletar sangue e ver a taxa de glicose.

Ele estava lá, na cama. Sem o sorriso de antes. Olhando pro teto, como quem procura uma mensagem de salvação. E você está lá, do lado, apenas compartilhando as presenças. Algumas noites de poucas falas, outras de choro. Muitas de dor. Algumas noites como uma maratona: vira prum lado, vira pro outro, peito pra cima, sobe a cama, desce a cama. E a agonia não passa. Outros dias, quase dopado, em constante sono.

Ele numa cama. Ele já não tem nada pra me dar. Não tem nada pra me oferecer. Eu tenho toda minha vida pra dar pra ele. O meu afeto. O meu abraço. O meu beijo. Isto é, não é mais o que ele é. Mas o que ele significa. O que ele representa. Aquele homem sobre a cama, com a mesma barba e cabelo branco, com uma expressão de medo, não foi o homem que eu conheci e que depois passei a conviver com ele. Já é uma outra pessoa. Como se a doença tivesse tomado conta do que ele foi. Ele não tem a doença. É a doença que o tem (se não me engano, vi essa imagem na peça do meu amigo Álamo Facó).

Ele já está nas mãos dos cuidadores. Depende de tudo. Ali eu tive uma lição de vida. Uma verdadeira faculdade, onde aprendi e refleti sobre cada detalhe. Eu levava um caderno e durante a noite, ia ao banheiro e ficava escrevendo os insigths que eu tinha. Eu pensava em reunir isso tudo em um livro, ao qual eu daria o título de Escritos do Hospital. Seria como um diário meu, relatando esses aprendizados. Ou como forma de dizer: “Aproveitem enquanto vocês tem saúde”, “Corram enquanto as suas pernas podem”. “Relevem, não briguem. Amem”.

Com o tempo, a coisa parece que vai piorando. Antes, as pernas paradas. Depois as mãos fraquejando. Ele ainda tentando comer com as próprias mãos. E a cada queda da comida, um pedido de desculpa. Com muito zê-lo e cuidado, você diz: “Você não precisa mais tentar comer sozinho. Eu estou aqui pra te ajudar”. Depois, era só ajeitá-lo e alimentá-lo, no tempo dele. Muitas vezes havia dificuldade ao engolir. E ele me dizia de novo: “Desculpa demorar assim”. Eu falava: “Vai no seu tempo. Eu tô aqui”.

Como já disse - e agora tenho falado muito mais, já que tudo acabou -, o momento que meu padrasto se internou, foi quase próximo do momento em que me separei. Com a distância, parece que superei rápido a minha separação e sem dor. Como se eu não tivesse amado tanto. Mas não foi nada disso, pelo contrário. É que eu me encontrava nesta situação, tendo que dar amor para alguém que agora apenas significa algo pra mim. Você tem que dar amor sem esperar nada em troca. Amor pelo amor. Já não importa aquele amor egoísta, que cobra a atenção. Aquele amor mesquinho, ciumento. Agora você está diante do amor mais humano, de alguém se doando para alguém que já está perdendo todas as condições.

Sim, nesses quatro anos, aprendi muito sobre o amor. Só eu sei às vezes que eu voltava exausto do hospital. Passava pelas pessoas como um zumbi e ainda tentando dar bom dia para elas, que mal me ouviam. Eu me levava pelos corredores como se estivesse repleto de buracos de emoção; como se eu fosse apenas alma. E assim eu via o quanto as pessoas passam por você e mal te notam. No entanto, eu havia acabado de deixar o meu padrasto no quarto, depois de ter cuidado dele a madrugada inteira. Então, no fundo, pouco me importava a indiferença de quem passava por mim.

Chegava em casa, cansado. Mas se tinha um sol brilhando no céu, eu não podia deixar esse dia passar. Colocava uma sunga e descia. Logo eu estava correndo na beira do mar de Copacabana, sentindo a natureza na planta dos meus pés. Não fazia isso só por mim. Porque sabia que meu padrasto amaria fazer isso. As minhas pernas correndo na areia, eram as dele naquele momento.

Não é mais o que ele é. É o que ele significa. E mais do que nunca, o meu coração se abriu para outras coisas. Gratidão por tudo! Ainda tenho que aprender tantas coisas e hoje torço para que dê tempo.

Eu me tornei uma pessoa melhor. E hoje sei que ainda vou processar tudo isso que eu vivi. Falar disso me deixa forte, por saber que fizemos tudo o que foi possível. E já tem um pouco mais de 24 horas que ele se foi. Já falei tanto disso, como forma de me libertar também e ver o quanto isso agora se converteu em experiência.

Ontem, na porta do hospital, perguntei: “E como foi a partida dele?”. A irmã dele me disse: “Ele estava meio que dormindo, de lado. E uma hora foram ajeitá-lo e o chamaram. Ele já não respondeu”. Uma lágrima escorre do meu olho. Dou um sorriso feliz. Ele partiu leve, eu penso.

O dia acaba. A respiração fica funda. Os olhos, mareados. E isso passa a ser o começo da saudade. O começo de uma nova fase. E posso ter certeza que hoje amo mais. Sou todo amor. E isso significa muito!

(É nesse momento que peço que coloquem a música Chão de Giz, pra ficar de fundo, enquanto pensamos).

Raul Franco
Enviado por Raul Franco em 20/10/2017
Reeditado em 20/10/2017
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