Os limites da crônica
Afinal, o que é uma crônica?
Crônica não é o que o autor quer que seja crônica. A sua liberdade consiste em voar com as asas que Deus lhe deu; pode arrastar-se como uma minhoca ou pular de galho em galho como um sagüi, mas na hora certa. A crônica tem a sua hora de gavião, de minhoca ou de sagüi. Às vezes o relógio está quebrado e o cuco canta rouco e gago: tem que ser assim.
Rubem Braga publicou um interessante Conto de Natal como uma de suas crônicas; o texto tem tudo para ser um bom conto, mas fica bem entre as crônicas e não ficaria em um livro de contos. Há mistérios que somente um cronista de verdade conhece.
Escrevi uma crônica chamada A Árvore e a Cruz com a intenção de fazer um poema em prosa como os de Jorge Luis Borges. Chamei-a de crônica porque ninguém a veria como um poema. Quase vinte anos depois, pensando tê-la perdido, escrevi uma crônica-parábola com o mesmo nome. Penso que as duas são crônicas-parábolas, mas não me maravilharei se alguém quiser chamá-las de poemas ou se outro alguém quiser negar-lhes o título de crônica ou de poema.
Há crônicas que se parecem com contos, outras com poemas, e outras enfim que só se parecem com crônicas mesmo. São essas últimas que eu gostaria de escrever. Contos e poemas voam com as asas da imaginação.
Mas e se a crônica tiver necessidade de voar, se for a sua hora de gavião!? O meu gavião abriu as asas em cruz diante dos meus olhos agora mesmo, depois voou na direção do sol, cada vez mais dourado, cada vez mais brilhante, e enfim pôs-se, como um ovo de ouro, no horizonte.
O escritor, qualquer escritor que se preze, não os senhores da sabedoria, mas os que não sabem, mas tiram leite da pedra, para depois maravilharem-se – Ah, era uma pedra! –, o escritor sabe que todo novo texto é uma nova aventura, é um salto no escuro, sabe que tem capacidade, e que à sua frente está o escuro. Que aterroriza, que apavora, mesmo aos mais preparados. E a crônica é o salto no escuro que se repete sempre e sempre. Deve ser simples, comunicativa, que o leitor a pegue de um estalo, e, apesar de já ser íntimo dela, sinta a necessidade de lê-la.
A crônica não deve ser literatura. É a comunicação imediata. O oposto da literatura. Se, com o tempo, não for só papel de jornal, que nem para embrulho serve. Se sobreviver, será literatura. Não quando o escritor a escreve. Quando a pátina do tempo escorrer de suas ranhuras. Se sangrar. Se uma aurora brotar no seu horizonte.
O problema é escrever para o lixo, o lixão do tempo. Se nem o tempo a devorar, será literatura. Será arte. Coroada com o emblema do eterno. Mas é escrita para ontem. É notícia. Somente será arte se escapar do efêmero para o perene. O escritor a escreve como jornalista – trabalhador do efêmero – na esperança (quando tem essa esperança) de que um sublime e fortuito acaso (?) a eleve do limbo dos dejetos perdidos ao altar da arte perene.
Mas talvez o sublime da crônica esteja mesmo no seu caráter de objeto perecível. Cumpre a sua função. Dá a notícia. Encanta. Comove. Não move montanhas nem caminhões; não é a sua função. Tem a leveza nos lábios. Se tivesse lábios – e tem, como uma obra de arte, que se recusa a ser.
Gozado, se recusa a ser arte, e a sua glória é quando se torna arte.
O cronista deve escrever uma crônica como se fosse um poema, um conto, uma sonata, até, tudo disfarçadamente. Que ninguém saiba desse ladrão que entra às escondidas, às apalpadelas, no seu íntimo – como se apenas nos visitasse de leve os olhos distraídos.
Cuidado com o cronista! Ele não quer nada, mas rouba a vossa alma. Talvez não tenhais alma, é que algum cronista já a roubou. Cronos é um deus implacável e o cronista é o seu lacaio mais solícito. Ele vos levará os chinelos, os pijamas, talvez a cueca, talvez o coração ou a alma, como se realizasse a mais inocente das tarefas, espanar os móveis e os bibelôs fúteis de vossa vidinha.