Escrever

"Escrevo por não ter nada a fazer no mundo: sobrei e não há lugar para mim na terra dos homens. Escrevo porque sou um desesperado e estou cansado, não suporto mais a rotina de me ser e se não fosse a sempre novidade que é escrever, eu morreria simbolicamente todos os dias. Mas preparado estou para sair discretamente pela porta dos fundos. Experimentei quase tudo, inclusive, a paixão e o seu desespero. E agora só quereria ter o que eu tivesse sido e não fui."

Clarice Lispector

Escrever muitas vezes é um ato doloroso. Mas que precisa ser realizado. Como respirar, comer, dormir. É a forma que encontro de me comunicar com o mundo.

Escrever é como desvendar um nó. Ou melhor, vários nós. Escrevo para tornar-me leve, menos ansioso, para respirar melhor. Assim como Clarice Lispector, eu escrevo para salvar a vida de alguém, provavelmente a minha própria vida.

Quando se tem muitas coisas guardadas na cabeça, escrever passa a ser um ato que nos ajuda a esvaziar-nos. É preciso esvaziar tudo para que outras dúvidas sejam criadas. E que entrem nesse processo cíclico de compreensão, de duelo com as coisas da existência. Comigo as coisas funcionam assim. Se passo mais de três dias sem escrever, fico mal, como se não tivesse avançado em nada. E isso é muito doloroso, mas extremamente necessário.

Escrever é uma dádiva. Algo que me foi conferido, sabe-se lá por quem. Mas sei que preciso realizar esse ato todos os dias. E gosto muito de escrever como terapia. Depois que escrevo, sempre me sinto melhor. E costumo fazer algo muito interessante que é escrever até a exaustão. Até o cansaço total. Escrever quando o corpo já pede clemência, a cabeça pede um travesseiro. Acho que assim as coisas saem mais verdadeiras, sem bloqueios ou coisas pré-fabricadas. É como o ato criador dentro do teatro. Geralmente produzimos melhor quando estamos cansados. O corpo vai no embalo e passa a viajar nos estímulos do ambiente. Está livre, como uma pena caída do céu. Gosto de me ver nesse estágio. Escrever é como morrer um pouco e depois ressuscitar na manhã seguinte, com novas percepções do mundo.

Quem não escreve, pensando em tudo isso, não compreende muito bem como determinadas pessoas passam horas escrevendo. Lembro que uma amiga, ao me ouvir falar que passei várias madrugadas escrevendo, perguntou-me o que é que eu escrevia tanto e por quê. Eu, simplesmente, disse: “Escrevo porque é um destino, a maneira que encontro para responder às coisas que me afligem, me doem”.

Não escrevo necessariamente para lançar algum livro ou mesmo uma peça de teatro. Escrevo pra me compreender, para matar o dragão que fica me cuspindo fogo. Escrevo pra mim e pra ninguém. É como um poema de Antônio Cícero que diz: “Faço longas cartas pra ninguém”. Eu também faço mil cartas pra ninguém – ou para alguém imaginário. Tenho uma caixa só com essas coisas. Algumas são cartas para alguém, querendo dizer algo a mim mesmo. Ou seja, muitas vezes uso as pessoas como pretexto para me dizer as coisas que mais preciso escutar. Às vezes, faço cartas para pessoas que já se foram, mas que eu ainda tinha muito a dizer a elas. Então, imagino que lhes escrevo, e elas, no lugar onde estão, devem saber de tudo isso.

O escritor Caio Fernando Abreu, uma vez, disse algo interessante acerca do suicídio da poeta Ana Cristina César. Disse que ela nunca poderia ter feito isso, porque ela tinha a literatura. E se lermos as coisas de Ana Cristina César, veremos o quanto ela trabalhava as suas dores nos seus escritos. E se pegarmos as suas últimas coisas, veremos o quanto a sua alma estava cansada e angustiada. Mas ela ainda encontrava forças para escrever, para exteriorizar essas dores. E essas coisas, com certeza, servem, hoje em dia, para termos um parâmetro de uma autora e seus conflitos explícitos. De certa forma, valeu a sua luta constante, o seu duelo com as palavras, mesmo sabendo que ela não suportou essas dores e acabou sublimando a sua vida, pulando do alto de um prédio em Copacabana. Talvez, ela achasse que voaria e compreenderia melhor o mundo, estando mais perto das estrelas.

Outra pessoa que usou a arte para expressar essas angústias da alma foi Renato Russo. E se ele teve sucesso, encontrou um público que adorou as suas letras, a sua forma de cantar tudo aquilo, é porque, no fundo, sentimos também da mesma maneira. Porque não é fácil dizer coisas como: “Parece cocaína mas é só tristeza”, “Quase morri há menos de trinta e duas horas atrás”, “Me sinto tão só e dizem que a solidão até que me cai bem”, “Não sei onde estou indo, só sei que não estou perdido” e “Hoje a tristeza não é passageira, hoje fiquei com febre a tarde inteira”.

Uma vez ouvi uma canção de um cara chamado Guilherme Gui em homenagem a Renato Russo. O nome da canção é A sua voz. E há um trecho em que, sob sua ótica, ele fala sobre o Renato: “Sua eterna busca, sua solidão foram meu farol / em quase todas as horas”. Nessa frase, percebe-se a importância de um artista como fonte de inspiração para o outro. Ele diz que Renato lhe serviu de farol. Aí, há uma ideia da qual gosto muito, essa noção de que a “morte” do outro – no sentido que falei anteriormente – pode nos dar uma visão melhor daquilo que, talvez, nem tenhamos vivido. Pode, inclusive, nos servir de alerta. Daí, a importância fundamental de expormos nossas dores, nossas angústias. Eu faço isso comumente e sei que, ao expor o que sinto, ou mesmo o que nem sei o que é, posso estar salvando a vida de alguém, mesmo sabendo que o faço na intenção de salvar a minha própria vida.

Escrever é tão importante que, muitas vezes, os terapeutas recomendam isso aos pacientes, como forma de compreensão de suas trevas. Muitos pacientes, ao se iniciarem nesse processo, acabam gostando tanto que se tornam escritores.

Por isso, digo: escrevam hoje, escrevam sempre. Escrever ajuda a nos melhorar comoo ser humano. E se estamos aqui, temos que melhorar, para que os dias sejam sempre de profundo crescimento.

Raul Franco
Enviado por Raul Franco em 04/09/2017
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