Contemplações e Observâncias III 01/06/2001
Nota, o texto abaixo foi escrito a alguns anos, mas só na data que resolvi lapidar e guardar.
Quase todos os dias os via; ela bonita, elegante até, pele muito clara, cabelos bem pretos, altura mediana, magra; ele bem apessoado, pele branca mas bronzeada de sol, cabelos louros, corpo atlético, altura mediana; ambos jovens, não mais do que vinte e três anos, embora ela, que chamarei por Maria, com corpo e modos já de mulher, e ele, que chamarei por José, naquele tipo físico de definição, pois já não mais era um piá mas ainda por ser homem adulto. Desde o primeiro dia que os vi, entrarem no mesmo ônibus que todos os dias eu utilizava, já senti uma forte empatia pelos dois; primeiro, ao ver que sentaram-se nos degraus da porta de desembarque pensei que tratava-se de dois jovens maconheiros e vagabundos. No segundo dia, tropecei na mochila que José tinha no chão, junto ao corpo, e estavam sentados, novamente, nos degraus da porta de desembarque do ônibus; José desculpou-se dizendo: "Perdoe-me, por minha displicência, quase que o senhor cai. Está tudo bem? Eu sou José."; então simpatizei-me com ele, pois sua maneira de falar e seu linguajar foram-me estranhos, jamais esperaria uma gentileza ou educação em uma pessoa a quem já tinha como um jovem desocupado e maconheiro. Eu agradeci, conversamos e novamente desci do ônibus e eles prosseguiam viagem. No terceiro dia, já o vi no ponto do ônibus, estava sozinho, peguei um banco individual, e ele sentou-se no banco duplo, de frente para mim, colocando a mochila em um dos lados do banco; logo após entrou Maria, e sentou junto dele - ele estivera guardando o lugar para ela. José lembrou-se de mim, perguntou como eu estava, enfim, puxou prosa. Conversei com os dois durante o tempo de meu trajeto até o ponto perto de casa. Novamente, desembarquei e eles prosseguiram no ônibus, e assim foi durante muito tempo. Desde então senti vergonha de meu julgamento preconceituoso do primeiro dia que os vi. Eles não eram vagabundos, e se fossem realmente não teria importância; eu já fora injusto no pré julgamento que fiz deles. Mas tive de concordar comigo mesmo que eles não eram jovens comuns, visto que eram extremamente educados, na expressão de serem gentis, mas também muito cultos. Conversávamos sobre muitos assuntos, e quando não ficávamos perto, os via conversando com desenvoltura e inteligência com os demais passageiros. Todos começaram a gostar deles, inclusive eu, era um casal simpático, educados e felizes. Chamava-me também a atenção do carinho e amor que tinham um pelo outro; José havia me contado que conheceu Maria já a uns oito anos, e desde então estavam juntos, ou 'ficaram' desde que se conheceram em um show de rock'n'roll - os de rock pesado - que 'rolou' em Curitiba, na Pedreira Paulo Leminski, (que aliás, foi amigo meu). Disseram-me que foi amor à primeira vista. Quanto mais conversava com eles, mais acrescentava à simpatia, e também a cada dia Maria estava mais magra, demonstrando sua aparência doentia. Ela estava com Aids, contraída por agulha compartilhada, ao usar drogas; José, apesar de também ter usado droga injetável, e de ter usado as mesmas seringas de Maria, ainda não tinha nem sinal do vírus. Vendo a cada dia no rosto de Maria a ação destrutiva da doença, a fraqueza no seu corpo, a magreza anoréxica, pensei porque eles não contentaram-se em ser apenas maconheiros? Estariam nos embalos da droga e Maria não teria Aids; o 'cigarrinho marvado' não contamina como a agulha. Gostava de Maria e José, e já estava até fazendo comparativos ilógicos, na tentativa de uma defesa de Maria, tapar o sol com a peneira, defesa que não se justifica apenas porque gostei deles, pois droga é droga, maconha é alucinógeno, como cocaína ou crack, não poderia isentar que um faz menos mal que o outro, mas não tinha como deixar de pensar que se Maria tivesse usado apenas maconha, poderia não ter contraído a Aids; mas e se este fosse o destino dela?... bom, mesmo que se eu os tivesse conhecido no dia em que injetaram pela primeira vez, poderia ter impedido? será que poderia ter interferido? eles eram tão inteligentes, será que se eu pudesse ter estado com eles naquela hora, teriam me ouvido? -E se eu estive com eles nos sonhos?- E se eu disse, no sonho deles: Sai dessa, cara. Isto não te levará a nada, é suicídio. Vai olhar as pessoas morrendo nos hospitais. Pare teu mundo, mas olhe tua vida, que é joia preciosa do Eterno Criador dos Mundos....- Ah! Gostaria muito de ter ajudado, de ter impedido a primeira picada... Elevado nestes pensamentos todos os dias, apesar das orações, via Maria piorar. Mas também, para acrescentar mais uma atitude surpreendente, ainda mais em pessoa tão jovem, via o amor que um tinha pelo outro, que enternecia qualquer passageiro do ônibus que tivera contado com o casal. Era um amor puro, eles podiam ficar muito tempo, um olhando para o outro, sem dizer nada, mas que os demais sentiam o carinho, o amor que um tinha pelo outro. Eles viviam de comprar e vender livros usados, além de colares, pulseiras, artesanato hippie. Maria, com o passar do tempo, já não parecia uma moça bonita, a doença já mostrava toda a sua ação devastadora, acabando totalmente com a vitalidade e belezura que tivera em seu corpo jovem. O sofrimento dos dois era visível, bem como comovente o amparo, o amor e carinho que José dispensava à sua companheira, nunca a deixando só; sempre trazia um sorriso no rosto, um gesto carinhoso. Um dia, eu estava tomando chope no shopping com meu amigo Dom Joaquim, quando os vi, chegaram e sentaram-se próximo à nós, cumprimentaram-nos, pediram sucos e ficaram a namorar. Joaquim, com a serenidade de seus 84 anos de idade, olhava-os, meio que saudoso, quiçá mirando sua própria juventude à muito vivida, talvez vendo à si e sua esposa quando em namoro juvenil. Eu, observando, meio que invejoso, o amor que emanava de Maria para José, de José para Maria, como uma coisa viva, como um pulsar, amor em estado utópico sólido gasoso. Então um dia, não os vi mais no ônibus. Fiquei com saudade dos “meus maconheiros”. Algum tempo depois, alguém informava que Maria tinha falecido; a doença tinha vencido afinal, como que dizendo que 'a morte era o último embalo'; mais uma jovem tinha deixado muito cedo esta vida -será que esta morte, em si mesma já a muito anunciada, não seria uma forma de suicídio? terá Maria, no 'outro lado' que prestar contas como suicida?-. José, agora um homem inconsolável, entregara-se à bebida, mas logo depois voltou-se ao estudo intenso, como que tentando compreender os mistérios da vida e da morte; com a ajuda de um dos muitos amigos que fizera, internara-se para tratamento. Hoje, um ex viciado, pretende ser um teólogo e atuar em uma ONG, e se possível dar combate preventivo ao vício, tentando impedir, nos outros, uma tragédia que ele conhecera na pele, em todos os sentidos.
-Aahhh... mas não foi a droga que matou Maria... foi a doença AIDS, que estava em um tantinho de sangue, na ponta de uma agulha... AIDS também se pega no contato sexual... em transfusão de sangue... -Não importa, o relato que estou fazendo, não é para falar apenas desta doença nefasta, de AIDS contraída no uso de droga injetável. É apenas um relato do privilégio de ter conhecido gente, e gente muito especial, como 'Maria e José', apenas um relato sobre o viver e o morrer, viver com amor e sobrar amor. Ser gente, assim..., com estas palavras:
""Saber que vou morrer de Aids, por drogar-me, não é tão suplicioso quanto saber que terei que partir jovem, e não poder viver uma vida inteira, envelhecer com o meu amor; não ter mais o carinho de “José” é o maior castigo. Maria""
""Meu primeiro embalo com “Maria” foi demais. Mas depois da Aids, tenho a certeza, pelo resto de minha vida, que o tempo com Maria, foi de menos. Pela droga, foi muito curta. A vida foi pouca, e o amor, muito; agora faltou vida para ela.... e sobrou amor em mim. José.""
Que Deus -bendito seja o Eterno- conceda paz e misericórdia aos meus amigos, meus maconheiros, “Maria e José”.
As drogas são a ruína dos que buscaram o prazer e a liberdade ilusória. É muito triste descobrir, de maneira tardia em uma vida ainda jovem, que para se ter a maior overdose, o maior delírio, não precisa ser injetado ou fumado, visto que já é inerente, interno no homem, e é o Amor. Já te enviei e-mails com muitos pensamentos, hoje te envio este texto, sem pretensões, pequeno relato da convivência com um casal, jovens de vinte e poucos anos; talvez para ter a oportunidade de dizer-te que esta vida é muito curta, e que as drogas podem abreviar ainda mais; talvez para te dizer que a vida é muito curta, e que viver com o amor, qualquer um deles, o amor dos apaixonados, ou de Deus ou o amor fraternal é vida feliz; talvez para te lembrar que a vida é uma das maiores obras do Grande Arquiteto do Universo. Se ao ler este texto e o conteúdo dele tocar o teu coração, já valeu a pena ter escrito. Mas se dizes, que tenho eu a ver com este tal casal, no tal ônibus, da tal Curitiba? Que tenho eu a ver com estas pessoas? drogas e AIDS? Viajando... Nada... não importa, basta deletar este e-mail. Nenhuma verdade é soberana que não seja contestada, nenhum pensamento é uma verdade absoluta. Eu já fiz reviver a lembrança de juventude, minhas e tuas, com a realidade de hoje. Por uma 'estranha realidade', o escritor Carlos Castañeda, pelo seu mentor Dom Juan em um de seus livros, -talvez Viagem à Ixtlan- descreve que em comparativo à eternidade e magnitude da criação, esta vida é um lampejo, um estalo, passa muito rapidamente e deve ser vivida em sua plenitude, o caminho deve ser percorrido em toda a sua extensão. O alucinógeno abrevia o percurso, e o melhor do caminho, da vida, fica por percorrer, desconhecido, não vivido; se ainda não deletou este e-mail, se chegastes até aqui, nesta história de um cotidiano alienígena ao teu próprio, ou -até mesmo- parecido com o que já experimentastes, ou que já vistes acontecer ao teu lado, então digas, para ti mesmo, não às drogas, diga sim ao privilégio da vida... e diga também ao teu irmão, teu pai, teu amigo, teu vizinho... e principalmente, a teu filho, se o Criador, em bênção, te concedeu: A vida é o maior presente, o maior barato, a maior de todas as viagens... Viver a vida, e viver a vida sem drogas, é aproveitar melhor a maravilha de existir, ser gente.
Roberto N. Gomes, São Paulo 02 de junho de 2001, texto de Contemplações e Observâncias