SOLIDÃO, CHUVA E A LÁGRIMA POR BELCHIOR

SOLIDÃO, CHUVA E A LÁGRIMA POR BELCHIOR

*Rangel Alves da Costa

Mesmo que eu goste tanto de solidão como de chuva, emaranha os sentimentos ficar tão solitário num dia inteiro de água caindo das nuvens.

Isso aconteceu comigo ontem, domingo véspera de feriado. Deitei sozinho, acordei sozinho e o dia inteiro eu passei sob o véu da solidão.

Sou solteiro. Todo mundo viajou. Eu que teria que seguir ao sertão desde a sexta-feira, eis que acabei ficando impossibilitado de viajar e fiquei sozinho.

Mas neste domingo a solidão aumentou, ficou imensa, abismal. No sábado sempre há algum movimento pelas ruas, mas no domingo tudo silencia de vez.

Não só o silêncio da casa e das ruas, mas principalmente a chuva caindo desde a madrugada. E o dia inteirinho ora de chuva forte ora de pingos incessantemente caindo.

O silêncio, a solidão e a chuva caindo marcaram o meu dia. E também uma saudade sem fim de alguém que tanto amo e que estava onde eu deveria estar e não fui.

Gosto demais quando acordo - sempre na madrugada - e sigo à porta dos fundos para sentir a chuva caindo. Também quando rente ao portão da frente fico sentindo os seus pingos.

Em instantes assim, com o silêncio da madrugada cortado apenas pelos sons da chuva caindo, é como se a memória seguisse rumos distantes e trouxessem mil nostalgias.

No silêncio da madrugada também me encontro mais, reflito mais, escrevo melhor. Mas quando é madrugada chuvosa, o melhor mesmo é deixar que o olhar acompanhe seu véu.

Como afirmado, sempre prefiro escrever no silêncio da madrugada. Contudo, a certeza de que o dia inteiro seria de chuva e também de solidão, as letras pareceram sumidas.

Tomava um cafezinho, fumava um cigarro, levantava para ir até o portão e avistar o asfalto brilhando da água escorrendo, tudo em busca de inspiração, mas nada.

Sim, chegava-me a inspiração, mas de coisas sobre as quais eu não desejava escrever. Saudade da namorada, da distância do meu sertão, saudade de muita coisa que tanto amo.

A manhã inteira assim nesse quase nada fazer. E o que fazia era pensar, rememorar, relembrar de coisas velhas e novas, como num apanhado depois que velhos baús são abertos.

E na sequência do dia uma notícia triste: a morte de Belchior. Mesmo já estando sumido desde tanto tempo, sua música o aproximava a todo instante. E ele havia morrido.

Então, entristecido, me pus a ouvir mentalmente suas canções geniais. Bem que poderia tocar cada uma no som adiante. Contudo, preferi ouvir na memória o grande mestre.

“Saia do meu caminho, eu preciso andar sozinho, deixem que eu decida minha vida...”. “Há tempo, muito tempo, que eu estou longe de casa, e nessas ilhas cheias de distância o meu blusão de couro se estragou...”.

Mas não suportei. Então cortei todo o silêncio e solidão com a sua inesquecível voz:

“Não quero lhe falar

Meu grande amor

Das coisas que aprendi nos discos

Quero lhe contar como eu vivi

E tudo que aconteceu comigo

Viver é melhor que sonhar

Eu sei que o amor é uma coisa boa

Mas também sei

Que qualquer canto é menor

Do que a vida de qualquer pessoa

Por isso cuidado meu bem

Há perigo na esquina

Eles venceram e o sinal está

Fechado pra nós, que somos jovens

Para abraçar meu irmão e

Beijar minha menina, na rua

É que se fez o meu lábio, o meu braço

E a minha voz

Você me pergunta pela minha paixão

Digo que estou encantado

Com uma nova invenção

Vou ficar nessa cidade

Não vou voltar pro sertão

Pois vejo vir vindo no vento

O cheiro da nova estação

Eu sinto tudo na ferida viva

Do meu coração

Já faz tempo eu vi você na rua

Cabelo ao vento, gente jovem reunida

Na parede da memória

Essa lembrança é o quadro

Que dói mais

Minha dor é perceber

Que apesar de termos feito

Tudo, tudo, tudo, tudo o que fizemos

Ainda somos os mesmos e vivemos

Ainda somos os mesmos e vivemos

Como nossos pais

Nossos ídolos ainda são os mesmos

E as aparências, as aparências não enganam não

Você diz que depois deles

Não apareceu mais ninguém

Você pode até dizer que eu estou por fora

Ou então que eu estou enganando

Mas é você que ama o passado e que não vê

É você que ama o passado e que não vê

Que o novo sempre vem

E hoje eu sei, eu sei que quem me deu a idéia

De uma nova consciência e juventude

Está em casa guardado por Deus

Contando seus metais

Minha dor é perceber

Que apesar de termos feito

Tudo, tudo, tudo, tudo o que fizemos

Ainda somos os mesmos e vivemos

Ainda somos os mesmos e vivemos

Ainda somos os mesmos e vivemos

Como nossos pais!”

E a solidão e a chuva agora acompanhadas de lágrimas. E foi como se o domingo molhado e tristonho também estivesse se despedindo do poeta do amor e da rebeldia.

Escritor

blograngel-sertao.blogspot.com