A suposta existência
"Existem as coisas sem ser vistas? O interior do
apartamento desabitado, a pinça esquecida na
gaveta, os eucaliptos à noite no caminho três vezes deserto,
a formiga sob a terra no domingo, os mortos, um minuto depois de
sepultados, nós, sozinhos no quarto sem espelho? Que fazem,
que são as coisas não testadas como coisas, minerais não descobertos - e algum dia o serão?
Estrela não pensada, palavra rascunhada no papel que nunca ninguém leu? Existe, existe o mundo apenas pelo olhar que o cria e lhe confere espacialidade? Concretude das coisas: falácia de olho enganador, ouvido falso, mão que brinca de pegar o não e pegando-o concede-lhe a ilusão de forma e, ilusão maior, a de sentido?
Ou tudo vige planturosamente, à revelia de nossa judicial inquirição e esta apenas existe consentida pelos elementos inquiridos? Será tudo talvez hipermercado de possíveis e impossíveis possibilíssimos que geram minha fantasia de consciência enquanto exercito a mentira de passear mas passeado sou pelo passeio, que é o
sumo real, a divertir-se com esta bruma-sonho de sentir-me e fruir peripécias de passagem?
Eis que se delineia espantosa batalha entre o ser inventado e o mundo inventor. Sou ficção rebelada contra a mente Universal e tento construir-me de novo a cada instante, a cada cólica, na
faina de traçar meu início só meu e distender um arco de vontade para cobrir todo o depósito de circunstantes coisas soberanas. A guerra sem mercê, indefinida prossegue, feita de negação,
armas de dúvida, táticas a se voltarem contra mim, teima interrogante de saber se existe o inimigo, se existimos ou somos todos uma hipótese de luta ao sol do dia curto em que lutamos.”
(Carlos Drummond de Andrade,
A suposta existência
)