DEGUSTADOS, ETC.

Degustados, etc.

O réu vê-se acusar por ter servido a seus convidados, em data recente, uma peixada, por ele mesmo preparada, de todo insossa e mal cozida, empregando ingredientes inadequados e de discutível qualidade, de forma a transformar o já citado prato, sabidamente deslumbrante, em uma pasta gosmenta inaceitável.

Refere a peça inicial que as vítimas sentiram-se profundamente atingidas em seu requintado paladar além de terem suportado sensível prejuízo consubstanciado no tempo que dispenderam tentando deglutir aquela fracassada empreitada gustativa.

O procedimento teve regular tramitação. O demandado foi interrogado e ofereceu defesa. Colheram-se, após, as declarações de três dos ofendidos indicados e os depoimentos de duas testemunhas. Seguiram-se os debates onde o acusado fundamentalmente clama por uma solução absolutória e, a acusação, por entender culinariamente tipificada a conduta atribuída ao réu, pugna por um decreto condenatório.

É o relatório.

DECIDO.

Imputa-se ao réu delito de extrema gravidade, capitulado na legislação gastronômica pátria, qual seja, o de ter elaborado, de forma descuidada, negligente e imperita, uma peixada de todo inaceitável causando às vitimas sensível desconforto em seu apurado paladar.

A inaugural sublinha que o prato contava com peixe de inferior qualidade excessivamente cozido, camarões de reduzido porte emborrachados além de um inominado molho decididamente inadequado.

Quando instado a defender-se o réu admite não ter sido feliz na preparação da iguaria de que se cogita. Mas procura exculpar-se sob o argumento de que, no dia dos fatos, encontrou grande dificuldade para comprar os ingredientes, pois eles se encontravam em falta.

Sustenta que tinha o firme propósito de adquirir um peixe nobre como garoupa, abadejo ou cherne. No entanto só conseguiu achar postas de cação congelado.

No que tange ao camarão assinala que era sua intenção adquirir aqueles do tipo rosa graúdos. Informa que chegou mesmo a atritar-se com o balconista, mas só conseguiu alguns sete barbas pequenos e, foi forçado a ficar com eles como única alternativa que lhe restou ou lhe pareceu válida. Pior, assinala, seria desapontar seus convivas.

Explica que não tinha como desiderato realizar qualquer economia e, se ingredientes melhores não comprou ou empregou foi unicamente em razão dos motivos alinhados. Bem por isso acredita que nenhuma parcela de culpa, a esse título, lhe deverá ser debitada.

No respeitante ao molho impugnado, assegura que usou tomates maduros, cebola e alhos importados, pimentões escolhidos e azeite extra-virgem.

Em remate procura minimizar os efeitos de sua conduta asseverando que os convidados, além de serem excepcionalmente exigentes, não desconheciam a circunstância de que ele nunca passou de um neófito nas lides culinárias, não lhes sendo lícito, agora, atribuir-lhe, por inteiro, a responsabilidade pelo nefasto resultado.

Atenho-me ao exame do contexto probatório.

Sua análise esta a revelar que, efetivamente, a iguaria de que se trata estava a ressentir-se de melhores e mais hábeis cozinheiros a prepará-la.

O próprio réu admite expressamente que nunca foi um “expert” e, tanto as vítimas como as testemunhas trazidas a depor relatam de forma harmônica e coincidente que o conjunto apresentava-se viscoso e descolorido, com nacos de peixe desagregados a engrossar um molho tristonho onde boiavam impunes alguns camarões miúdos e endurecidos.

Atestam, também, de forma uníssona que o prato ressentia-se da utilização de adequados temperos próprios para peixes e frutos do mar e, o sabor que sobressaia era de puro extrato de tomate.

Com base nesses depoimentos e, bem sopesada a prova, penso não se possa deixar de concluir que o acusado preparou uma verdadeira gororoba no lugar da peixada a que se propusera.

Induvidoso não tenha medido esforços em conseguir os melhores ingredientes. O balconista do supermercado quando ouvido informou que o réu chegou a ser grosseiro e descortês ao exigir a mercadoria então inexistente. Prova roborada pela empregada igualmente ouvida que testificou tê-lo acompanhado em três supermercados a procura de bons produtos.

Entretanto, força é convir, tais argumentos não lhe aproveitam. Como aqueles que procura desfilar acentuando que estamos em período de entressafra de pescados ou mesmo que o camarão encontra-se na época do “defeso”, em que se resguarda a captura para proteger sua reprodução.

Porque, se o convite fora feito já há bastante tempo, bem deveria ter-se acautelado adquirindo em casas especializadas os ingredientes necessários à empreitada gastronômica, sem riscos ou sobressaltos de última hora, sabido que nelas encontram-se peixes e frutos do mar de primeira qualidade em qualquer época do ano.

Quanto isso não bastasse, a decididamente traduzir sua responsabilidade, a significativa circunstância, de que é verdade sabida, a dispensar qualquer substrato probatório, o fato de que jamais se poderá utilizar peixe do tipo cação ou camarões miúdos na preparação do prato vertente. De forma que, mesmo a admitir-se verdadeira sua assertiva de que é um iniciante nas lides culinárias, tal detalhe não teria o condão de inocentá-lo, pois com segurança não poderia ignorar esse fato, de comezinha e universal ciência.

Imperdoável, outrossim, tenha se aventurado, sem qualquer respaldo de um “chef de cuisine” experiente, a elaborar um prato dessa magnitude. Deveria ater-se, primeiro, a fazer o arroz, mais tarde o pirão para ir ganhando com o tempo os conhecimentos e a prática indispensável para empreitar tarefa dessa envergadura.

No que tange especialmente à feitura de molhos, todos nossos mestres são uníssonos em afirmar que constitui suma heresia gastronômica a tentativa de sua preparação com produtos improvisados, de discutível procedência ou sem que se possua a habilidade ou técnica necessárias.

Nesse passo é SILVIO LANCELLOTTI quem, depois de discorrer sobre as cinco essências elementares, adverte em sua clássica obra dedicada ao tema:

“Saibam todos, também, que uma boa receita é conseqüência direta da boa qualidade dos ingredientes que a compõem. Uma única folha de manjericão estragada pode arruinar um pesto genovês. Um único tomate ultrapassado pode estragar um sugo caseiro e suave”. (“in” O Livro dos Molhos, Art. Editora. 3ª ed., pg. XIII).

Comungando igual entendimento SAUL GALVÃO, ao desvendar os grandes segredos da mesa em sua magistral obra, igualmente leciona:

“O primeiro deles: usar sempre bons ingredientes”. E mais adiante arremata: “E esse não é conselho meu, é de Paul Bocuse.” (“in” Os Prazeres da Mesa, Editora Ática, 2ª edição, 1988, pg.8).

Com igual proveito poderiam ser consultados os maiores chefes de cozinha de todos os tempos como Escoffier, Vatel, Rebuchon, Curnonsky, Careme, François Marin entre outros de idêntico estofo, todos eles a recomendar extrema atenção e cuidado na escolha dos componentes de qualquer prato, especialmente de molhos difíceis e requintados.

Por outro lado a palavra do réu restou de todo isolada nos autos tendo sido veementemente desmentida pelas declarações das vítimas, que de forma segura e convincente, afirmaram que o molho recendia um odor intenso como o daquele industrializado.

Uma delas chegou mesmo a relatar haver divisado no saco de lixo doméstico duas ou três latas que lhe pareceram massa de tomate. Versão que encontrou respaldo na palavra de outro dos ofendidos que assegurou ter visto, misturado entre pratos e talheres a lavar, um abridor importado com a lâmina tisnada de vermelho rubro.

A versão defensória de que teria usado tomates e ingredientes frescos, bem se vê, restou de todo desacreditada pelos demais elementos colhidos e não está a merecer agasalho.

A tessitura probatória a contrariá-lo é sobranceira a permitir seguro juízo de convencimento no respeitante tenha procurado servir molho adrede preparado e industrializado. Sua conduta está a configurar frontal violação a legislação específica que regula a espécie.

Acresça-se, também, que ao preparar ignominiosa plastra e sem qualquer constrangimento tentar impingi-la aos convidados acabou por violar os mais rudimentares preceitos éticos e culinários pertinentes à matéria.

Porque não há ocultar, a comida plasma a personalidade daqueles que dela se alimentam. A ponto de BRILLAT SAVARIN, magistrado e gastrônomo francês do século XVIII, ter afirmado em seu célebre aforisma “Dis-moi ce que tu manges, je te dirai qui tu es”, procurando dizer que o caráter e a inteligência de uma pessoa se revelam na escolha daquilo com que se alimenta (cf. A Fisiologia do Gosto, Salamandra Consultoria Editorial, Rio de Janeiro, 1989).

A teor dessa preciosa lição, bem se vê, a nefasta conduta do réu só maiores dissabores não trouxe porque foi prontamente recusada pelos atentos comensais.

Por outro lado nada nos autos a evidenciar extreme de dúvidas a argüida sensibilidade culinária exacerbada de que seriam portadores. Ao reverso tudo leva a crer sejam apenas normais “gourmets” a defender legítima pretensão, qual seja a de serem gastronomicamente respeitados.

Bem por isso, penso esteja o réu a merecer a sanção legal que constitui, no caso vertente, medida de rigor.

Na aplicação da reprimenda levarei em conta, como atenuantes na sua fixação, a ingenuidade de sua personalidade, o vão, mas sincero esforço que fez na aquisição dos corretos ingredientes e, por fim o fato de ter admitido francamente e sem rebuços a má qualidade da comida que preparou.

Isto posto, e tendo em conta tudo o mais que dos autos consta, condeno o réu a prestar serviços gerais e culinários, todos os fins de semana, pelo prazo de um ano, em um restaurante cinco estrelas com especialização em pratos marinhos. Será iniciado gradativamente nas lides gastronômicas de maneira possa conscientizar-se de que o preparo dos pratos com peixes e frutos do mar não se compadece com improvisações e aventuras, mas exige precisão, arte e profundo conhecimento culinário.

Publique-se.

Registre-se.

Intimem-se e

Cumpra-se.