MINHA QUERIDA TIA MIQUE!
Por Bete Bissoli
Desembarco na rodoviária da Estação da Luz, em São Paulo. Ano de 1969, pleno inverno, céu de brigadeiro: azul, azul, tudo azul. Menos o clima político no país. Uma junta militar assume o comando da Nação. Exército, Marinha e Aeronáutica. Medo, incertezas e bico fechado. E policiais, muitos policiais.
Ao meu lado, alheia a esses “pequenos detalhes”, tia Miquelina. Entre o drama e a comédia, era personagem saída de filme de Fellini. Tia Mique, a gente a chamava carinhosamente.
Bastante idosa, exageradamente perfumada, muito pó-de-arroz, muito batom (com o qual vivia nos carimbando o rosto), cabelo tingido de vermelho-cobre e uma imensa capacidade de nos fazer rir e chorar e até de nos irritar, em fração de segundo. Bem atrapalhada, a querida tia Mique, mas um tipo extremamente marcante, inesquecível!
Sua filha morava em São Paulo, em uma ruazinha bonita da Vila Clementino. Como tia Mique queria visitá-la mas nunca tinha ido à capital, coube-me a tarefa de acompanhá-la na quebra desse tabu. Que experiência interessante a minha!
Ao entrar no ônibus (já cheio) que nos levaria à Vila Clementino, o primeiro de uma série de problemas: minha tia se recusava a passar pela roleta. Insisti, mas que nada... Nem amarrada!, dizia.
O ônibus cada vez mais cheio e ela empacada. Pessoas reclamando, outras rindo, poucas observando compreensivamente... Até que uma freada brusca jogou todo mundo longe. Nesse bolo, tia Mique foi junto. Passou a roleta sem nem perceber!
Durante o trajeto, mais probleminhas surgiram. Fui contornando-os até que, plena Brigadeiro Luiz Antônio com Avenida Paulista (e o Brasil vivendo em regime militar), ônibus lotadíssimo, a querida velhinha me dá uma ordem e o diálogo que se trava beira o felliniano.
Ela: Me dê a bomba (os passageiros estranham).
Eu: Espera chegar no ponto final.
Ela, em voz mais alta: Mas eu quero a bomba já!(susto geral).
Eu: Tia, fique quieta.
Ela: A bomba é minha. Me dê a bomba!!! (passageiros atônitos).
Eu: Tia, eu não sei em que bolsa a senhora guardou (passageiros prontos para sair pela janela)!
Ela: Tá na sua sacola.
Eu: Tia... vai sujar toda a minha roupa!
Então, em meio a quatro sacolas, tiro da minha uma bomba de chocolate toda amassada. A assistência cai na gargalhada! E tia Miquelina come a bomba, alheia a tudo...
Já passei por poucas e boas na cidade de São Paulo: fui seguida na 13 de Maio; tive a bolsa estiletada em uma loja da rua Direita – um balconista me emprestou dinheiro pra voltar pra casa ; fiquei presa no Buraco do Ademar durante uma enchente; bati o carro no túnel que dá acesso ao Minhocão, em plena 2 horas da matina.
Tudo bem, essas coisas acontecem, mas não foi só isso: tive de me esconder em um cemitério pra fugir de ladrão; empurrei carro quebrado às 5 da tarde na Avenida São João; quase fui esmagada contra um portão no estádio do Morumbi, para ver o Sócrates, num jogo do Corinthians; um maluco me deu um soco nas costas na Praça da Sé; subi dezenove andares para chegar ao meu apartamento no dia do grande apagão... Ufa! Chega!
Só me resta dizer que nada se compara ao sufoco pelo qual passei, e ao mico que tive de pagar, com a bomba da adorável tia Mique, dentro daquele ônibus.
Sobrevivi... e continuo morando em São Paulo!!!
A querida tia Mique, agora, faz parte de minhas ternas lembranças! É uma boa saudade!